A bem da verdade, parece termos chegado ao fundo do poço: uma comitiva presidencial cujo membro de apoio é preso por ser mula, isso é o cúmulo. Se tivesse ocorrido com Lula ou Dilma, era caso de bater panela, fazer “manifestos” e chegar aos orgasmos coletivos nas principais avenidas de todas as cidades brasileiras. Mas, pasmem, isso não é tudo. Ainda virão absurdos inimagináveis, providencialmente revelados pelo Jornalista Glenn Greenwald e seus desdobramentos imponderáveis, porque essa, sim, é a “turma do bagulho” — e pobre do Brasil que foi induzido a esse vexame, “para não dar (sic) petê (‘perda total’)”. Só que não: está dando petê…
Na primeira parte, questionamos a “falta de sorte” alegada pelo general Augusto Heleno e a “ínfima exceção” manifestada pelo ex-juiz e “superministro” Sérgio Moro, como que não houvesse mecanismos de controle institucional e se tratasse de um traficante isolado levando uma inusitada quantidade como a encontrada no avião reserva da comitiva presidencial. Além de pinçarmos alguns ensinamentos da novela-reportagem de Luiz Taques, “Mulas”, entre eles que todo mula tem prazo de validade, isto é, será fatalmente delatado por concorrentes ou pelo capo da própria quadrilha.
Nesta segunda parte, voltamos à Bolívia sob a ditadura do sanguinário coronel Hugo Banzer Suárez, cuja patente de general foi adquirida já em sua condição de ditador, em 1971. Na verdade, o líder do golpe foi o coronel Andrés Selich, de inspiração fascista, que sofrera um “acidente” nunca elucidado ao subir as imponentes escadarias do Palacio Quemado, sede da presidência. Pois sua “conje”, Yolanda Prada de Banzer, como primeira-dama, passou pelo constrangimento de ter em sua comitiva um membro flagrado no Aeroporto de Congonhas com uma mala contendo aproximadamente dez quilos de cocaína. Denunciado pelo combativo diário católico “Presencia”, de La Paz, o episódio ficou registrado em pelo menos duas obras que desmascaram as milícias, os paramilitares e as ditaduras militares bolivianas e seus vínculos com a cocaína: “Com a pólvora na boca”, de Júlio José Chiavenatto, e “La veta blanca” (“O veio branco”), de René Bascopé Aspiazu, então diretor do emblemático semanário boliviano “Aquí”.
Oriundo de um povoado próximo à ferrovia Corumbá — Santa Cruz de la Sierra, Concepción, na Chiquitanía (departamento de Santa Cruz), Banzer era neto de alemão chegado à Bolívia no final do século XIX. Passou a juventude no Exército, a que ingressou por meio do colégio militar. Foi sinistro da Educação de outro golpista igual ele, o general René Barrientos Ortuño, que golpeou o presidente eleito em seu terceiro mandato, Victor Paz Estenssoro, em novembro de 1964. Fez diversos cursos no Colégio Interamericano de Washington e na Escola das Américas, em plena guerra fria. Daí por que seu posicionamento de anticomunista empedernido, tendo-se brindado a fiel serviçal do império.
Durante o breve governo do general progressista Juan José Torres, responsável pela nacionalização das concessões de jazidas de gás, petróleo e estanho, o seu futuro algoz, então obscuro coronel, foi diretor do colégio militar do exército em Cochabamba, quando se articulou a outros oficiais golpistas, entre os quais o coronel Andrés Selich, líder dos amotinados em agosto de 1971, com quem, meses antes, havia participado de uma conspiração frustrada, o que o levou a se exilar no Peru, e de onde voltara clandestinamente. O golpe foi uma demonstração do que viria depois: um verdadeiro massacre de estudantes, operários, camponeses, intelectuais, jornalistas e religiosos — como prenúncio do que aconteceria nos anos seguintes na América Latina, sobretudo no Chile, na Argentina e nos desdobramentos da “Operação Condor”.
Para o seu golpe, ele contou com 140 mil dólares, entregues por agentes da CIA em território boliviano depois de iniciado o amotinamento em Santa Cruz de la Sierra (as notas taquigráficas da Casa Branca, do Departamento de Estado e da CIA foram tornadas públicas em 2010, em que aparecem os diálogos entre Richard Nixon, Henry Kissinger e Thomas Karamessines, respectivamente presidente dos EUA, secretário de Estado e segundo diretor de planejamento da CIA). Em uma das transcrições, num diálogo entre Nixon e Kissinger em que este comunica o sucesso do golpe apoiado por eles, uma lacônica e sugestiva alusão ao Chile de Salvador Allende, golpeado e morto com o total apoio dos Estados Unidos.
O jornalista germano-boliviano Mario Busch, então analista político do O Estado de S. Paulo, descreveu os bastidores do apoio da ditadura do general Emílio Garrastazu Médici ao sangrento golpe de Banzer, em 1972, quando repercutiu a denúncia do diário católico Presencia, de La Paz (fundado e dirigido por outro germano-boliviano, o memorável Jornalista Huáscar Kajías Kauffman), de que o ditador boliviano havia cedido uma significativa área da região de Abuná (Abunã em português), na Amazônia, para o Brasil, em sinal de gratidão pelos “préstimos” do governo brasileiro ao seu governo (ou melhor, ao sangrento golpe)…
Entretanto, muito mais grave foi o desvio de 600 milhões de dólares emprestados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a execução de um programa de plantio de algodão em escala industrial, em 1976, destinado para abastecer a indústria têxtil estadunidense, em decorrência da longa estiagem nos estados americanos produtores de algodão. Segundo levantamento fartamente documentado do Jornalista René Bascopé Aspiazu, em “La veta blanca”, a iniciativa tinha propósitos óbvios: tirar da mineração de estanho a base das commodities da Bolívia, sobretudo porque os mineiros — isto é, os trabalhadores mineiros — eram a coluna vertebral do movimento operário boliviano, manifestado na combativa e poderosa Central Operária Boliviana (COB). Mas os milicianos, ansiosos por virarem “grandes empresários”, milionários às custas do endividamento da Bolívia, substituíram o branco do algodão pelo branco da cocaína, que desde então fez da Bolívia um dos principais produtores mundiais de cocaína.
Bascopé Aspiazu, reconhecido baluarte do jornalismo investigativo, teve o mesmo fim do senador e ex-candidato à presidência da Bolívia pelo Partido Socialista Uno (PS-1) Marcelo Quiroga Santa Cruz, ex-ministro de Minas e Energia da brevíssima gestão do civil Jorge Siles Salinas (meio-irmão do primeiro presidente civil e constitucional pós-ciclo militar, Hernán Siles Suazo, eleito pela Unidade Democrática Popular em 1980). Como senador, Quiroga Santa Cruz ousara propor e presidir o “Juízo do Século”, em que apresentava documentos que incriminavam o ditador Banzer em seus quase oito anos de tirania, corrupção e desmandos. Quando o Senado estava por concluir as investigações e submetê-lo a um juízo de lesa-pátria, outro golpe sangrento, desta vez dos narcogenerais promovidos por Banzer (García Meza, Natusch Busch e Arce Gómez), destruiu a frágil democracia iniciada quase um ano antes, com o único intuito de destruir as provas dos crimes cometidos pelos apoiadores e beneficiários do facínora, bem como o assassinato mediante tortura e humilhações de todos os inimigos de Banzer, entre eles Quiroga Santa Cruz e o Padre Luis Espinal, fundador do semanário Aquí, de cuja redação fazia parte Bascopé Aspiazu, morto anos depois em circunstâncias nunca elucidadas (“crime passional”, segundo a versão policial, constituída por velhos milicianos e paramilitares do ciclo militar).
Como meu saudoso Pai costumava dizer, ignorantes e sem caráter costumam ser os mais atrevidos, ousados e insensíveis. Porque são destituídos da base da condição humana, que é a dignidade e a racionalidade (que alguns preferem nominar por “razoabilidade”). No afã de prestar serviços aos seus amos e senhores do império, perseguiram, raptaram, sequestraram, torturaram, executaram e humilharam pessoas de todas as idades, convicções religiosas e políticas. Durante esse macabro período de obscurantismo e violência nunca antes visto na vizinha nação, velhos carrascos nazistas, como Claus Barbi (o “carniceiro de Lyon”), tiveram total liberdade para formar discípulos para sua odiosa doutrina e organizar grupos paramilitares e milicianos para o “serviço sujo”. E tanto no Brasil (entre eles Josef Mengelle, o “anjo da morte”) como no Paraguai, Argentina e Chile seus ex-comparsas de ações desumanas eram os adestradores de técnicas de tortura e extermínio de inimigos ideológicos.
Embora esteja tentado a incursionar sobre a (sic) “fraquejada” geral da mídia tupiniquim e de seus burocratas profissionais que mais lembram porta-vozes das emboloradas instituições de nossa frágil democracia, vítima de várias quadrilhas associadas para esquartejar o Estado Democrático de Direito e abater a soberania nacional, reservo-me apenas o direito de admitir que, mais uma vez, um jornalista estrangeiro fez com que a imprensa brasileira fizesse história. Detentor de prêmios mundiais de Jornalismo de verdade, como o Pullitzer, Glenn Grenwald é protagonista de uma cruzada de desmascaramento de uma hipocrisia de saltar aos olhos, mas que um ignóbil pacto de silêncio permitiu que a nação fosse subtraída em suas mais caras riquezas, sobretudo as liberdades democráticas, a segurança jurídica, a soberania nacional e popular, as riquezas naturais e o porvir das novas gerações por causa da perda de direitos seculares, rebatizados de “privilégios” pelos meliantes que tomaram de assalto os destinos do país a partir de maio de 2016.
Aliás, não foi diferente durante o regime de 1964, pois graças à digna família Carta, isto é, Mino Carta (fundador e primeiro diretor do Jornal da Tarde, do Grupo Estado, da Veja, da falecida Editora Abril, e da Istoé e do Jornal da República, da ex-Encontro Editorial, da Istoé/Senhor, da Editora Três, e finalmente da CartaCapital, da Editora Confiança, além de articulista da Folha de S.Paulo, ao lado de Claudio Abramo e Alberto Dines), Luis Carta (diretor editorial da Abril em sua melhor fase e primeiro diretor da inimitável Realidade, também em sua melhor fase, de 1966 a 1973, quando saiu por causa do intragável Roberto Civita e foi fundar com o empresário Fabrizio Fasano e o ex-diretor comercial da Abril Domingo Alzugaray a Editora Três, da Status, Repórter Três ePlaneta, e cinco anos depois fundou com Fabrizio Fasano a Carta Editorial, de várias revistas de primeiro nível da Vogue, tendo encerrado abruptamente sua carreira editorial bem-sucedida na Espanha, como editor e diretor da Vogue España, em 1994) e Giannino Carta (o patriarca dessa brilhante família de grandes Jornalistas, ex-secretário editorial e diretor de O Estado de S. Paulo, quando trouxe toda a sua família da Itália e conheceu o grande Jornalista Claudio Abramo, tendo-o guindado a secretário de redação enquanto ele era diretor do jornalão da família Mesquita, responsável pela renovação gráfica e editorial de um dos mais velhos jornais do país).