Há poucos meses estive em São Paulo. Saindo do aeroporto, pedi um carro por aplicativo. No caminho para o hotel, conversei com o motorista. E fiquei surpreso ao saber que, às 7h da manhã, aquela já era sua 4ª corrida. “Que horas você começou hoje?” – perguntei. “Na verdade, não terminei ontem” – respondeu para mim. “Para aguentar, só energético e Deus na fé”. Ele ainda me disse que era normal virar as noites levando e buscando clientes de festas, almoçar no carro e sair só para ir ao banheiro – se isto não atrapalhar uma corrida. “Preciso, pois tenho criança em casa e minha esposa não trabalha fora”.
No final do dia, com fome – e sem disposição de pagar pelo caro misto quente do cardápio do hotel – pedi um lanche que foi entregue por um garoto com um machucado feio no braço, que parecia em recuperação. “Fui fechado na marginal. Tudo certo, só ralou. Ainda consegui fazer a entrega naquela vez.” Situação um pouco desestimulante para o apetite, tenho que confessar.
Mais tarde, procurando vídeos para me ajudar a compor uma palestra que ministraria no dia seguinte, pude me deparar com youtubers ensinando como “trollar” companheiros de jogos de guerra, combinar roupas com maquiagem, macetes de LOL, piadas, dicas sobre finanças e relacionamento, estilo de vida… Não raramente vídeos “estrelados” por crianças ou adolescentes muito novos, sempre pedindo likes e inscrição no canal – o que pode render um bom dinheiro.
Essa é a nova economia. Colaborativa, como dizem alguns, inovativa e “disruptiva”, como pregam outros. Qualquer um, de qualquer idade, gênero, cor, o que seja, pode ser um “empreendedor” do transporte, com seu carro. Se tiver uma moto ou bicicleta, pode ir para o ramo da logística, especialmente no setor de entregas rápidas. Com um smartphone, já se transforma em um grande apresentador de variedades nas mídias sociais. Democrático, não?
E tem sido a salvação da economia: no último dia 31 de janeiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). A pesquisa mostrou que a taxa de desemprego no Brasil caiu, ficando em 11% no último trimestre de 2019. Chama a atenção que um dos principais responsáveis seja o aumento da informalidade – soma dos trabalhadores sem carteira, domésticos sem registro, empregadores sem CNPJ e aqueles por conta própria – que atingiu o nível mais alto dos últimos 4 anos (41,1% da população ocupada).
Não há dúvidas de que a nova configuração produtiva traz vantagens para quem quer trabalhar – e para as grandes empresas. Em tempos de poucas oportunidades, o que vier ajuda e pode contribuir para virar o jogo. Mas tem o outro lado: jornadas exaustivas, poucas garantias de proteção ao trabalhador, exposição a diferentes tipos de riscos, descuidos com as delicadas fases da infância e adolescência, promoção de valores duvidosos e concorrência desleal compõem a faceta sombria que muitos não querem ver – ou que se veja.
Como não há muitas alternativas para o trabalhador neste momento, o que as grandes empresas devem fazer é estudar formas de manter sua lógica produtiva de modo que não causem o esgotamento daqueles que lhes prestam serviços. Programas de prevenção de acidentes de trabalho, seguros contra sinistros materiais e danos civis, opções de atendimento de saúde física e mental parecem custos pesados, em um primeiro momento. Mas podem ajudar à atenuação da precarização das relações trabalhistas, e poupar as organizações de dolorosos processos judiciais. Além de evitar que sejam expulsas de alguns países, como aconteceu recentemente com o Uber na Colômbia.
* Leandro Tortosa, coordenador do curso de Administração da UCDB