O famoso “Poema em Linha Reta” nos diz que todos os conhecidos do poeta eram verdadeiros campeões em tudo, sem derrotas ou fracassos. O poeta, ao contrário dos demais, experimenta todos os erros, inseguranças e medos humanos. Caso ainda não conheça esse poema de Fernando Pessoa com pseudônimo de Álvaro de Campos, vale a pena ler.
O empreendedorismo é uma ilusão que cabe certinho nas nossas fantasias de sucesso: se eu trabalhar bem e muito, serei vencedor em tudo! Há aqui uma certeza embutida de que somos os mestres de nosso próprio destino e, embora isso não esteja de todo errado, esse futuro sonhado é sempre brilhante e glorioso.
Nosso futuro é resultante de variáveis complexas atuais e de eventos passados que certamente desenharam nosso presente. Além disso, algumas dessas decisões são tomadas e ainda modificadas por cada um. O equívoco está em acreditarmos na liberdade plena da decisão consciente sobre nossos atos, já que há em nós uma faceta inconsciente que direciona nossos desejos em cada ato. A parte mais equivocada e triste: não há nenhuma garantia de eficácia e do futuro tão sonhado se concretizar do jeito que idealizamos.
O poder ilusório de ter o futuro nas mãos traz amarrada a certeza de amarga responsabilidade, pois se o ouro não vier, será por falta de esforço da parte do sujeito. Sabemos que as condições sociais e culturais são desiguais e que a boa vontade não é suficiente e, ainda assim, a culpa sobreviverá! E remoeremos, horas a fio, onde e como poderia ter sido feito diferente, e ensaiaremos o que deveria, o que poderia, como, e o constante ‘e se’ martelando as lembranças.
A psicanálise aposta numa determinação inconsciente e que esse é transmitido através da linguagem para além da língua trazendo consigo a cultura. Esse nos precede e nele nos enlaçamos desde o início, através do olhar e voz maternos, dos toques e cuidados que precisamos para sobreviver dada a nossa inexorável vulnerabilidade. O laço nos garantirá a vida.
Os fatos passados que hoje nos afetam podem ser interpretados e ditos de alguma outra forma e a análise se presta à escuta que tornará possível esse percurso. Ressignificar o passado é de certo modo modificá-lo na realidade subjetiva que representará uma mudança atual abrindo novas possibilidades de escolha do futuro que podemos vir a ter.
“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”, continua o poeta mencionado no início. Na vida nós encontramos alegrias, mas também sofrimentos e sempre fazemos o que nos é possível. É preciso lembrar que sempre será o nosso melhor, dadas as circunstâncias, dadas as possibilidades, dada a nossa história que a tudo, em cada um desses atos, foi determinante. Alguma generosidade no cuidado de saúde mental pode representar uma qualidade de vida ímpar e valiosa.
Longe dessa exigência de êxito, talvez possamos considerar apenas o que nos seja melhor possível sempre. Talvez, lacrar e brilhar acima de todos não seja uma escolha tão feliz assim. Talvez, aceitar uma errância onde eventualmente se acerta possa trazer novamente gente para habitar nosso mundo atualmente pleno de pretensos semideuses. Portanto, deixemo-nos fracassar um pouco!
(*) Com formação e mestrado em psicologia pela UFRJ, Sandra Araujo Hott é psicanalista, professora e supervisora clínica. Sandra tem 25 anos de experiência clínica e mais de 20 anos como professora e supervisora.