Revolução é sinônimo de mudança. Na modernidade, muitas revoluções alteraram significativamente os quadros econômico, político, social, cultural e comportamental. No entanto, ainda que o ser humano moderno valorize a mudança – vide o sucesso que tem hoje a palavra inovação -, simultaneamente, ele sente um temor quando a mudança se instaura radicalmente. O novo exerce, ao mesmo tempo, um fascínio, uma atração e, na mesma medida, medo e repulsa.
Um exemplo histórico foi o da Revolução Francesa que, entre 1789 e 1799, demoliu a antiga sociedade feudal aristocrática amparada no Estado Absolutista e, em seu lugar, implantou a sociedade burguesa e o Estado Liberal. Em alguma medida, vivemos hoje em um sistema social e jurídico construído pelos revolucionários franceses. Embora à época, por um lado, muitos defendessem implacavelmente a revolução – chegando ao radicalismo de mandar para a guilhotina os amantes saudosos da Bastilha -, por outro, muitos se opunham a ela. Os opositores (e um exemplo foi o filósofo inglês Edmund Burke) tinham como argumento a suspeita de que as mudanças radicais não faziam bem à sociedade, que seria melhor deixar o neto de Luís XIV, o rei sol, no trono e evitar os excessos que toda revolução traz. Essas ideias ora são chamadas de conservadoras ora de reacionárias. Conservadores acreditam que as mudanças sociais são naturais, lentas, graduais, sem abalos. Os reacionários sofrem de nostalgia pelo passado e gostariam, se possível fosse, de viver na Idade Média.
Nos séculos XIX e XX, muitas revoluções seguiram tal exemplo e consideraram que “tudo que é sólido deveria se desmanchar no ar” (Marx). O mundo contemporâneo é o mundo de revoluções por minuto. Imagino que se meu avô, nascido em 1883 e falecido em 1956, ressuscitasse; ele não estranharia a pandemia da COVID-19, uma vez que tinha assistido à pandêmica gripe espanhola que, entre 1918 e 1920, dizimou milhões de seres humanos. Mas, no mundo dos Smartphones, dos aplicativos de comunicação, transporte e alimentação, seria bem possível que o vovô tivesse um colapso e morresse de susto, acreditando que estivesse em outro planeta.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm em sua obra magistral sobre o século XX, A Era dos Extremos, de todas as revoluções que aconteceram no século XX, a mais bem sucedida foi a revolução dos costumes. Porém, no lugar de políticos, foram os jovens e as mulheres que estiveram à frente.
A Revolução Cultural em curso no século XX, que teve, entretanto, seu paroxismo em maio de 1968, demoliu outras prisões. A Revolução Cultural derrubou a Bastilha, onde estavam encarceradas visões e comportamentos tradicionais, consolidados historicamente na sociedade: a visão binária, que classifica gênero e sexo em duas formas distintas e opostas – masculino ou feminino e a dominação masculina – que argumenta em favor de uma suposta superioridade masculina – e, em contraponto complementar, de uma presumida inferioridade feminina. Na lógica dessa Bastilha, a diferença e a superioridade masculina são naturais e, portanto, imutáveis. Nessas Bastilhas, caberia à mulher se submeter à autoridade de um homem nas esferas privada e pública.
As revolucionárias francesas do século XVIII participaram da revolução, mas não lograram colher os louros das conquistas revolucionárias. Caberiam às trisnetas da Marselhesa, queimar sutiãs, questionar o patriarcado, o machismo e reivindicar o debate a respeito da identidade de gênero, repensar e ressignificar o conceito de masculinidade e de feminilidade, bem como rediscutir o lugar e o direitos dos homens e das mulheres na sociedade.
No Brasil, a revolução chegou associando temas como: lugar de fala, feminismo, racismo estrutural, interseccionalidade, apropriação cultural, empoderamento, intolerância religiosa, masculinidade tóxica e assim por diante. Complexidade de uma sociedade que herdou não apenas o patriarcado machista, mas também o racismo advindo de séculos de escravidão e uma violenta desigualdade social.
Como foi dito, toda revolução é bem recebida por aqueles que projetam nela esperanças de que as mudanças possam trazer mais justiça, liberdade, igualdade. A violência com que os opressores tratam os oprimidos irriga as utopias revolucionárias. Porém, aqueles que são afrontados pela revolução, com medo de perder seus lugares e espaços privilegiados, lutam contra ela, seja detratando seus valores, seja argumentando que o velho é melhor. Nunca vi um banqueiro defender o socialismo, mas já vi muitos bancos patrocinarem visões idílicas e fraudulentas do paraíso capitalista.
Ora, se o patriarcado, o machismo, a dominação masculina estão em xeque, não é de se estranhar que, alguns homens, com medo de perder o seu poder, se articulem em prol de hostilizar o feminismo, de atacar o debate em torno da identidade de gênero, de afrontar as lutas por igualdade entre homens e mulheres. Afinal, quase todos os homens foram educados para pensar que sua dominação é uma lei divina e/ou natural. Colocar em suspeita a autoridade do falo é muita areia para o caminhão de um homem machista e inseguro.
Parece-nos que este é o caso de um movimento denominado de Machonaria, uma ação que pretende “resgatar a masculinidade patriarcal”. O idealizador do movimento é o pastor Anderson Silva, líder da igreja Vivo Por Ti.
O pastor Anderson escreveu em seu Instagram: “Não teríamos tantas feministas decepcionadas andando por aí se os homens fossem melhores maridos e pais, porque a reação natural das mulheres de Deus é confiar e respeitar os verdadeiros homens de Deus”. O pastor promove um curso on-line chamado “Be a Man” que promete oferecer caminhos de “como se tornar um homem bíblico”. Anderson oferece dicas para os homens de como se portar na vida e na sociedade, promovendo ideias de empreendedorismo e desenvolvimento financeiro do homem. Os temas “Como investir na bolsa?” e “Como empreender?” também estão na extensa lista de palestras.
Anderson organiza um evento para homens interessados em resgatar seu falo perdido com atividades e palestras ministradas por pastores e personalidades do mundo gospel. Batizado de Machonaria II, o encontro promoveu a “masculinidade, espiritualidade e o empreendedorismo entre homens” e aconteceu de 14 a 17 de novembro de 2019, nos arredores de Brasília. Os ingressos custavam a partir de R$ 1.850, podendo chegar a R$ 2.950, com direito a hospedagem em um hotel fazenda. A descrição do evento dizia que os participantes poderiam se perceber como “reis, profetas e sacerdotes”. Importante observar que muitas mulheres apoiavam esse movimento, mas houve também reações contrárias.
Entre outros aspectos, eventos desta natureza, como a Machonaria, revelam um patriarcado em crise. E como já foi dito, quando um sistema entra em colapso emergem na sociedade movimentos pela restauração dos velhos costumes. Velhos costumes, porém, neste caso específico engarrafado com odres novos, ‘uma vez que associa ao patriarcado valores contemporâneos da sociedade de mercado, empreendedorismo, inovação, sucesso financeiro. Parece-nos que Anderson é híbrido entre pastor e coaching e que, no combo da felicidade espiritual masculina, Anderson promove a comoditização de poder, virilidade, riqueza e sucesso econômico.
O reacionarismo machista disfarça muito bem seu discurso com uma embalagem de inovação e empreendedorismo. Conciliam valores arcaicos do patriarcado com o contemporâneo mercado. Vinhos velhos em odres novos. Em geral, as pessoas se aborrecem com o conhecimento daquilo que mais precisam. Resistimos àquilo que nos transforma mais profundamente. Para os homens que não forem flexíveis e não reativos às mudanças, fica o grande desafio: não devemos subir no palanque para defender os direitos das mulheres, mas temos que confrontar nossos iguais nas práticas machistas mais básicas.
*Jorge Miklos é Sociólogo e Analista Junguiano. Atualmente dirige uma pesquisa a respeito das masculinidades contemporâneas no Brasil.