Nascido no dia em que a Primeira Grande Guerra eclodiu, a 1º de outubro de 1914, Mahoma Hossen Schabib, o peregrino que a Vida nos deu como Pai, sobreviveu com dignidade e atitude à perda da Mãe aos 5 anos; à pandemia da gripe espanhola; ao massacre de jovens pelos gendarmes coloniais franceses em Damasco, onde realizara os estudos fundamental e médio; à imprevisível vida de universitário no Cairo sob o jugo da Grã-Bretanha, à época o maior império terrestre; à desafiadora viagem marítima pelo Pacífico até chegar à América pelo porto de Arica em 1939, e à travessia aérea dos Andes para aportar na Amazônia boliviana, onde o irmão Ale Hossen Schabib (que, naturalizado, passou a assinar Alejandro Hossen S.) já era próspero atacadista e correspondente bancário em Trinidad, capital do departamento de Beni, na Bolívia.
O imprescindível apoio das “irmães”, dos irmãos e do Pai, que optou por não voltar a se casar para dar todo o apoio a filhas e filhos, foi, obviamente, importante. No entanto, o seu Primo-Mestre Escandar Schalak, bem mais velho que ele, reconhecia a personalidade singular daquele órfão que não escondia a saudável ambição de conhecer, se reconhecer e conquistar o mundo, numa época em que as vias de acesso ainda eram as mesmas que as do final do século XIX. Sem dúvida, tratava-se de um cidadão do mundo e à frente de seu tempo, como viria a provar décadas depois.
Seu Schabib (como era afetuosamente conhecido em todos os países em que viveu, trabalhou, estudou e escreveu compulsivamente), desde adolescente demonstrou uma insólita altivez ao se reportar aos seus professores, sem, contudo, beirar a indisciplina. O Primo-Mestre que, ao contrário dele, decidiu permanecer a vida toda em Rasen Hache (Batroun, norte do Líbano) admirava o primo mais jovem por seu ímpeto transformador, que se recusara a permanecer em seu povoado milenar a pastorear ovelhas e cultivar videiras, oliveiras e tabaco. Não por presunção ou devaneio, mas por não tolerar toda forma de opressão: ele nascera sob a tirania do império turco-otomano e permanecera em sua terra natal já sob o jugo francês, e quando ingressou na Universidade o Egito era um mandado britânico, eufemismo para colônia que foi berço das sociedades sedentárias que o próprio ocidente reconhece como base de sua alardeada civilização.
Cidadão do mundo, em momento algum perdeu a identidade: declarava-se árabe, ainda que a nacionalidade libanesa nunca tivesse abandonado. Quando, em 1975, criamos um jornal interescolar e ele fizera questão de ser “paitrocinador”, em um modesto artigo que fiz sobre o conflito do Oriente Médio (a revolução e depois guerra civil libanesa se alastrara naquele ano), ele me dera uma verdadeira aula magna de História, além de me explicar por que ele se declarava árabe, e não apenas libanês, e os ideais pan-arabistas.
Nas três viagens transcontinentais que fez entre as décadas de 1930 (ele aportara em Arica em 1º de janeiro de 1939) e 1960, os livros e manuscritos foram sua bagagem mais cara, e em casa a área mais privilegiada era a que abrigava suas centenas de livros, lidos e relidos, com dedicação e rigor metódico. Essa vida disciplinada e cheia de propósitos lhe fortaleceu os valores que desde jovem trazia. E, óbvio, influenciou filhas, filhos e netas e netos que chegaram a conviver com ele.
Estivesse no Líbano, Síria, Egito, Palestina, Bolívia ou Brasil, sempre fez questão de situar-se no mesmo contexto social em que nascera e ser coerente com as ideias e conceitos que o motivaram como livre pensador, humanista e amante da cultura onde quer que se encontrasse. Criticava a postura colonial, de superioridade, de imigrantes que, saindo do universo pátrio, adotavam as posições das classes dominantes do país em que se encontravam. Mas não entrava publicamente no debate político local ou nacional do país que o acolhia.
Foi como se comportara como colaborador de inúmeros jornais e revistas, entre os quais Mundo Árabe, La Razón, Al-Anbá, La Prensa, Diário de Corumbá, Diário da Manhã e Jornal da Cidade, e de emissoras de rádio como Radio Centro, Rádio Cairo e Rádio Clube. Em Cochabamba, na emissora em que apresentava um programa semanal inicialmente sobre cultura árabe e depois sobre o mundo árabe, tinha a seu lado um Amigo de juventude, o contador e poeta Angel Gómez, que revisava o espanhol e ao mesmo tempo o aconselhava sobre o tênue limite entre o contundente e o prudente, até porque o sionismo começava a se fortalecer na Bolívia e, mesmo sem motivos, acabaram por persegui-lo comercialmente, quando optou por retornar ao Líbano.
A referência familiar também estava presente: quando chegara, era o Irmão Alejandro o seu farol, mas foi se distanciando à medida que sua família crescia, até porque os sobrinhos e sobrinhas já eram adolescentes, e, ainda que os amasse, o constrangimento o fez procurar a independência. Assim, foi mascate pelos rios amazônicos, enfrentando a epidemia de malária que o atingiu mais de uma vez. E foi a malária que o fez conhecer a Família do Doutor José (aliás, Youssef) Al Hany, que o tratou e quando conheceu a filha Wadia Al Hany Ascimani, a partir de 26 de abril de 1948 Wadia Al Hany de Schabib, sua Companheira por quase 50 anos. E assim como o Irmão o trouxe, anos depois trouxe o Primo Hussein Khalil Schabib Khatib e o Sobrinho Zoheir Ahmad Schabib Khatib, ex-sócios e Amigos por toda a Vida.
Embora a Vida lhe cobrasse provações inimagináveis no campo comercial, o que o levou a sair da Bolívia contra a vontade quando a hiperinflação do final da década de 1950 e a perseguição sionista travestida de judicial inviabilizaram a sobrevivência da Família, por certo o maior golpe que sofreu foi a morte inexplicável (e não esclarecida) de seu filho primogênito, Mohamed Schabib Hany, aos 25 anos, próximo da conclusão da graduação, no aniversário de Corumbá, em 21 de setembro de 1974. A dor da perda, acompanhada por nossa saudosa Mãe e filhas e filhos, foi imensa, acrescida das intrigas estimuladas pelas autoridades policiais, que não nutriam qualquer simpatia por nosso Pai. A seguir, a morte, em chacina comandada por paramilitares da Falange Libanesa, de vários primos e sobrinhos em seu próprio povoado, num total de 36 familiares indefesos, queimados vivos dentro de suas próprias moradias. Nem por isso deixou de acreditar nos valores que cultuou em toda a Vida…
Quando, em 1994, decidira encerrar as atividades da pousada (ou “hospedaria” como era afetuosamente chamada em família), durante décadas inserida de graça em guias como o South America Handbook e South America on a Shoestring por causa de seu owner “simpático, sincero, prestativo, higiênico e poliglota”, fez questão de publicar um artigo assinado em que agradecia a generosa acolhida pelo povo brasileiro e corumbaense, relembrava a eterna gratidão pelo povo boliviano e não deixava de cobrar das autoridades maior compromisso com o Pantanal, reiterando o que para ele era vocação natural de Corumbá – o turismo e o comércio -, comparando-a a Milão, como ficou registrado numa edição do Diário de Corumbá, de abril de 1994.
Neste 1º de outubro de 2020, quando Mahoma Hossen Schabib estaria completando 106 anos de muita dignidade e atitude, seu legado vivo e vívido nos permite reverenciar a memória deste cidadão do mundo à frente de seu tempo, um peregrino que a Vida nos presenteou como Pai. Com letra maiúscula.
https://schabibhany.blogspot.com/2020/10/106-anos-de-dignidade-e-atitude_1.html
*Ahmad Schabib Hany