Campo Grande (MS) – “Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo” é o título da exposição individual da obra da Conceição que o Masp começou a oferecer ao público este mês. É a primeira exposição monográfica num museu dedicada à obra de Conceição Freitas da Silva, a nossa Conceição dos Bugres, falecida em 1984. A curadoria é de Fernando Oliva, com curadoria assistente de Amanda Carneiro.
Para o diretor-presidente da Fundação de Cultura de MS, Gustavo de Arruda Castelo, a exposição, que fica em cartaz até o dia 30 de janeiro de 2022, mostra a relevância dessa artista indígena que é um orgulho para a cultura sul-mato-grossense. “Nós da Fundação de Cultura estamos extremamente felizes com essa exposição nesse importante museu que é o MASP. Com certeza, suas obras mostrarão para ainda mais pessoas como nossos artistas são talentosos e como nosso Estado tem identidade cultural rica e diversa”.
Mariano Antunes Cabral Silva, o neto de Conceição e quem continuou seu trabalho, contou que os bugres surgiram devido a um sonho de Conceição. “Minha vó sonhou, levantou-se do sonho e daí pegou uma rama de mandioca e viu que parecia um bugre. Fez um rosto na rama de mandioca. Começou assim, depois ela trocou a rama pela madeira, porque aquele material ia apodrecer”.
Mariano, que começou a ajudar sua avó com os bugrinhos aos oito anos, diz que ficou muito alegre com a exposição das obras de Conceição no Masp: “Fico muito alegre, é uma coisa boa minha avó em São Paulo, fico feliz. Por causa da pandemia ainda não fui ver exposição, mas estou planejando ir, aliás, não vejo a hora de poder ir”.
Anelise Godoy, ceramista, graduada pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, conheceu Conceição dos Bugres e chegou até a fazer uma exposição com releitura da obra da artista. “Eu era muito amiga do Ilton [Silva, filho de conceição], quando a Conceição começou a confeccionar os bugrinhos eu era recém-formada, eu vim de São Paulo, terminei a faculdade lá e voltei para cá para produzir e comecei a dar umas aulas na Universidade Federal. Como era ali perto da UFMS a casa dela, eu passava ali, comprava uns bugrinhos, presenteava muitos amigos de fora com eles. Eu conversava com a Conceição, ela estava bem no início ainda, os bugrinhos eram bem rústicos, ela tinha uma geladeira, assim bem no cantinho, onde ficavam os bugrinhos que ela produzia, e ela ainda catava uns toquinhos no quintal, isso eu lembro bem”.
“Os bugrinhos que eu adquiri sempre eu fiz uns estudos, eu achava muito bacana porque ela fazia uns mais concentrados, outros mais soltos, ela ia aproveitando a própria forma da madeira, e depois ela começou a usar a cera para revesti-los, tudo era muito bacana, o processo. Ela tinha um processo de criação muito lindo. E na década de 80 eu fiz uma releitura do trabalho dela, de uma forma bem contemporânea, que na época até muitas pessoas estraram um pouco porque eu pegava a madeira, fazia uma leitura dos bugrinhos, de cada um que eu tinha, fazia uns estudos e passava um abstrato geométrico com os mesmos materiais que ela usava, eu usava a cera de abelha para revestir no final e pintava os bugrinhos, que eram umas caixas, umas superfícies bidimensionais, com a profundidade pra dar essa questão da tridimensionalidade que ela usava e fazia essas leituras. Foi uma exposição muito bacana na Galeria Itaú, com 20 peças. Foi muito prazeroso fazer, tinha uma energia muito boa. Da Conceição só tenho a agradecer e com certeza aplaudir essa iniciativa dessa exposição dela, que eu acho que a arte de Mato Grosso do Sul com certeza vai junto com ela sempre, ela é nossa referência, ela continua sendo, enquanto escultora, nossa grande mestra”, conta Anelise.
A escultora demonstra sua alegria com o reconhecimento da arte da Conceição dos Bugres com sua exposição no Masp. “Fiquei muito feliz mesmo com esse reconhecimento do Masp, tem todo o histórico da Conceição referente a nós, escultores do Estado, toda essa presença dela em relação a esse resumo do que é o bugre, a figura pra gente enquanto ícone dessa força que os bugrinhos têm. Estou pensando seriamente em dar um pulo lá pra ver. É bacana ver a arte de Mato Grosso do Sul, principalmente da Conceição, com o histórico todo dela, uma pessoa super humilde, uma grande artista, e que trabalhou essas peças e que levou a arte de Mato Grosso do Sul pra fora e que o Masp agora consagra, dando essa visibilidade toda para nós. Eu acho que a gente está num momento muito bacana de retomada da arte de MS de uma forma geral, e a Conceição sempre puxou a gente pra isso, com essa força dela”.
Na exposição do Masp consta o livro de Isabella Banducci Amizo sobre a obra da Conceição. O livro, financiado pelo FIC-MS, é resultado da dissertação de mestrado que a Isabella fez na UFMS sob orientação da professora Maria Adélia Menegazzo. “Se nós pensarmos, então, na trajetória dos bugres, nós podemos ver como, com o passar do tempo, existe uma mudança de status, quando a Conceição começou a produzir as esculturas despretensiosamente, no quintal da casa dela com o material que ela tinha disponível ali mesmo, do cotidiano, mas, quando são vistas por pessoas ligadas ao campo da arte, elas serem levadas então para essas exposições, para museus e galerias, eles adquirem um novo status, passam a ser considerados peças artísticas”.
“É muito interessante notar, também, uma segunda mudança nesse status, a princípio uma mudança do que seria artesanato, e que passa a ser considerado obra de arte, mas também ganha o status de marca identitária de Mato Grosso do Sul, um marco da cultura local. E aí cabe ressaltar o que eu mencionei anteriormente, sobre a complexidade presente nas esculturas e na própria escultora, na própria Conceição, porque a Conceição era mulher, era pobre, não teve acesso à educação formal, que são pontos que poderiam fazer com que o trabalho dela fosse alvo de discriminação, ou de descaso, mas ela se torna um dos principais nomes da expressão artística de Mato Grosso do Sul”.
“E além disso, o reconhecimento que ela alcança é através do bugre, que tem uma imagem não só negativa mas também negada em MS, o próprio termo bugre, que na nossa região remete a uma condição de inferioridade, de atraso, de oposto ao civilizado, muitas vezes soando quase como um xingamento, quando a gente se refere às esculturas como bugres, bugrinhos, perde essa negatividade, a gente fala de uma forma acolhedora, mais carinhosa. Então é paradoxal pensar nas esculturas como uma representação das nossas populações indígenas, de forma tão valorizada, mas sabendo que a realidade dessas populações é outra. Esses são alguns pontos que eu ressalto aqui para exemplificar o peso, o valor, a importância do trabalho da Conceição, todos os pensamentos que esse trabalho nos possibilita, todas as reflexões que ele nos traz. Os bugres da Conceição estão hoje espalhados pelo Brasil, pelo mundo, em algumas coleções privadas, mas também existem esculturas no acervo da Galeria Estação, em São Paulo, por exemplo, no Itaú Cultural, e a partir desse mês existe uma exposição individual da Conceição Freitas no Masp em diálogo com outras importantes escultoras brasileiras, a primeira de uma série de outras que virão, e essa exposição dá uma importante visibilidade para a Conceição, que já faleceu há 37 anos, mas que continua sendo tão importante e traz o reconhecimento de um trabalho que é importante não só para Mato Grosso do Sul, não só para a arte do nosso Estado, mas pra toda a história da escultura brasileira”.
Thaís Pompeu, produtora cultural, explica que as obras da Conceição que estão no Masp já estavam em SP, via colecionador e acervo de galerias e museus. Thaís fez a intermediação entre a família e o museu. “Eles tinham muita dificuldade em falar e conseguir evolução com a família, aí fui contratada para ajudar nesse meio de campo, uma vez que a curadora-assistente não pode vir para cá por conta da pandemia”.
Para Thaís, o fato de o Masp dar espaço para a exposição individual da Conceição dos Bugres sem dúvida chancela a importância da obra da Conceição não apenas no Brasil, mas internacionalmente, esse que é a grande importância, a meu ver, de a Conceição estar no Masp, uma vez que ela já fazia parte de acervos como do Museu Afro Brasil, em São Paulo, do Instituto Brasil Cultural, ela vai agora fazer parte do acervo do Masp. Tem umas obras que foram doadas, duas obras de um colecionador, então agora ela passa a fazer parte do acervo do Masp, e isso, sem dúvida, é um momento muito importante, principalmente internacionalmente, uma vez que o Masp é um dos museus mais importantes da América Latina, museu muito importante nesse setor de artes visuais, então, sem dúvida, chancela internacionalmente a potência da obra da Conceição dos Bugres. E isso se materializa não só na exposição, mas no catálogo, que na verdade é um livro que possui mais de cem fotos, são vários especialistas falando, do Brasil, gente aqui do Estado, tem a Isabella Banducci, que fala sobre a biografia da Conceição, os curadores falam, também, a Naiene Terena, do Mato Grosso, que é uma indígena inserida nas Artes Visuais, também escreve texto, e a Júlia Bryan Wilson, da Universidade de Berkeley, na Califórnia fala, então, assim, é um material importantíssimo para pesquisa, materializando também a importância da obra da Conceição”.
“E isso, pra arte de Mato Grosso do Sul, é um momento, também, não vou dizer sem precedentes, mas talvez eu esteja exagerando um pouco, mas eu acho que não, talvez se compare ao momento em que o Humberto Espíndola esteve na Bienal de Veneza, ou na Bienal de Arte de São Paulo, mas que é o que muitos artistas lutam, pelo menos pra romper as fronteiras do Estado, isso a Conceição já tinha feito, agora ela vai ganhar mais visibilidade, mas romper como Brasil, uma arte fronteiriça, uma arte que nasce popular e ganha esse status de obra de arte, é um momento muito maravilhoso, muito importante, não apenas para a obra da Conceição, mas para a visibilidade das artes de Mato Grosso do Sul, um momento que deveria ser aproveitado. É uma pena que ela não esteja viva para desfrutar de todo esse sucesso e de todo esse reconhecimento”.