O Brasil vive um risco de declínio sem apogeu

“[...] a revolução não é um ato sobrenatural, é um processo dialético de desenvolvimento histórico” Gramsci, “O desenvolvimento da revolução” (1919)

O artigo “A eleição que o mundo espera”, do historiador Lincoln Penna, publicado na página do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos-IBEP (https://www.ibepbrasil.org), retoma o debate em torno do caráter do processo social brasileiro contemporâneo, a disjuntiva revolução ou reforma, ou, mais precisamente, as distinções entre meio e fim, e suas derivações gramscianas – revolução passiva, revolução permanente. O texto discute as vias da revolução, como tese, e se apoia em Darcy Ribeiro (o mais indignado dos grandes pensadores brasileiros), para quem “não é impensável que a reordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático”. Penna admite que “o enfrentamento pela via do rompimento institucional tem um alto custo social, ao passo que a negociação, sem que se dê margem para que tudo permaneça como está – ressalva – pode fazer avançar as pautas sociais de natureza popular, mediante iniciativas que venham a acumular forças e mudar definitivamente a situação do povo brasileiro”. Para isso, porém, e não está esquecido o historiador, é preciso elevar o nível de compreensão política das grandes massas, ofício de que, lembremos, abdicou a esquerda socialista, desatenta a propósito da lição do autor dos ​Cadernos do cárcere, para quem não tanto os fatos econômicos são artífices da história, mas, sim, o homem e a sociedade. O ser humano agente de transformações, a sociedade como um processo sempre inconcluso.

O preço cobrado pela omissão é sempre muito caro, e tem implicado, com força de lei incoercível, o fortalecimento da direita e, portanto, a contenção revolucionária. No Brasil de hoje estamos correndo o risco do declínio sem havermos conhecido o apogeu.

Não carecemos de exegetas para compreender o significado da emergência do bolsonarismo que hoje tanto nos assusta como ameaça, seja ideológica, seja eleitoral. Trata-se do primeiro movimento de extrema-direita de bases populares em todo o curso da vida republicana, e, também, a primeira vez que a corrente ultrarreacionária conquista o poder valendo-se do processo eleitoral. Está hoje sentada no terceiro andar do palácio presidencial, tem o respaldo da cúpula militar e das forças de repressão, o apoio do grande capital e, em conluio com os conservadores de todos os naipes, controla o congresso nacional. E deve aprofundar esse controle nas eleições vindouras.

Não se trata, porém, de um “ponto fora da curva”, ou mero descuido dos deuses do Olimpo.

A opção oportunista pelo eleitoralismo, navegando nossas hostes nas vagas dadivosas do lulismo, levaram os socialistas a renunciar a qualquer sorte de proselitismo ideológico-político. Por havermos perdido a visão histórica, perdemos de igual modo a compreensão de nosso papel no processo político. Não está aqui a crítica à opção democrática das esquerdas brasileiras, historicamente correta, mas ao fato de, a ela aderindo, os socialistas haverem confundido tática e estratégia, via e objetivo. A consequência, inevitável nas condições dadas, significaria o abandono da crítica ao capitalismo e, com ela imbricada, a renúncia à defesa do projeto de uma sociedade sem classes. Perdida a causa, rota a bandeira, restou-nos a disputa de espaço na institucionalidade. Renunciamos ao nosso caráter distintivo, à nossa própria organização, necessariamente coerente com o projeto revolucionário de longo prazo. Terminamos exercendo o papel de correias de transmissão do projeto hegemônico, animados com a esperança de, nele, intervir a favor dos trabalhadores.

Há mesmo, entre nós, os que, muito impressionados com os bons êxitos econômicos da China, chegam a defender, como via tática da revolução (transferida para as calendas gregas), o desenvolvimento do capitalismo como remédio em si para o nosso atraso. Diz-se que essa é a única opção possível diante do atraso político brasileiro: não se pode fazer política contra a realidade, senão lidando com os fatos objetivos. Mas, saltando do desvio idealista-voluntarista, que é atuar sem considerar a realidade, esse caminho nos leva à contramão antirrevolucionária, em que assumimos o papel de conservadores do statu quo capitalista que, como socialistas, propusemos derruir. A possível e futura hegemonia dos trabalhadores seria, assim, cedida de pronto à burguesia.

Por conveniência, é posto de lado o Marx das Lições sobre Feuerbach, para quem o conhecimento da realidade não se justifica como ato contemplativo, senão como o primeiro passo para a intervenção revolucionária.

Lênin advertira a propósito da necessidade do encontro das condições objetivas (a exploração capitalista) com as condições subjetivas (a consciência proletária), embora ressaltando que nem toda situação revolucionária leva à revolução. Nem muito menos é inteligente esperar que o capitalismo colapse como consequência inexorável de suas próprias contradições. Esse fatalismo, anticientífico, versão metafísica do determinismo histórico, não encontra amparo na realidade, simplesmente porque o processo social não conhece autogênese e a revolução não é fruto do acaso, “um raio em céu azul”, como advertia o Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, filósofo e revolucionário.

Na política, como na natureza, não há efeito sem causa.

O conceito de revolução pouco diz respeito à via de conquista do poder, mas às transformações econômicas e sociais levadas a cabo. A tomada do poder pelos sovietes liderados por Lenin mais se associa a um golpe de Estado, embora tenha resultado no primeiro projeto de implantação do socialismo e a mais importante revolução social do século passado. De outra parte, o processo de construção do comunismo na China se deu na culminância de uma longa revolução camponesa, que, sempre sob o comando do Partido Comunista, transitaria para a revolução capitalista de nossos dias, cujo pontapé inicial foi dado em 1977 por Deng Xiaoping, regressando de seu segundo exílio para ocupar o trono onde antes se sentara, reinando, Mao Zedong. Não foi a tomada do poder pelos guerrilheiros, em janeiro de 1959, de origem um movimento democrático-libertário, que deu a Cuba o título de revolução socialista, mas a opção adotada em 1961.

Nem os revolucionários reivindicam, para o justo merecimento do conceito, a necessidade da convulsão social, ou do conflito armado. Tampouco rejeitam o reformismo democrático experimentado em diversas contingências. Esta via, porém, é sistematicamente vedada pela direita. O exemplo mais notório, dentre tantos que podem ser arrolados, talvez seja o da guerra fascista contra o governo republicano espanhol (1936-1939). Não é diverso o testemunho de nossa república. Um golpe de Estado deitou por terra, em 1964, o projeto nitidamente reformista e democrático de João Goulart (porque reforma – menos evidentemente aquela quem aprofunda a ditadura do capital sobre o trabalho — é, para a direita civil-militar brasileira, sinônimo de comunismo), e outro golpe de Estado interrompeu, em 2016, o processo de emergência das massas iniciado pelo primeiro governo Lula sem qualquer pretensão de alterar a correlação de forças que assegura, desde a colônia, o domínio da casa-grande sobre a nação e o país.

A direita demoliu com a violência conhecida, em 1973, a experiência reformista de socialismo na Argentina, na Bolívia, no Equador, no Panamá, em Honduras e em qualquer país latino-americano ou caribenho que tenha aspirado a um governo popular. E, em regra, os projetos democrático-reformistas foram sucedidos por longas ditaduras, as vagas de institucionalidade democrática acompanhadas da tutela militar. Esta é a saga de centenas de golpes de estado da direita em todo o mundo, levados a cabo pelas burguesias locais, condicionadas pelos interesses estratégicos do colonialismo (seja inglês, seja belga, seja francês…) e do imperialismo, este de mãos e pés livres desde o fim da Guerra Fria.

As vias do processo revolucionário não são decididas pela sua vanguarda, mas pelas condições objetivas do processo social, e dentre elas releva considerar o papel conservador/contra-revolucionário da classe dominante. Cabe registrar, no quadro brasileiro presente, a crise do bloco hegemônico, que, em benefício do país, pode nos levar a uma alternância de poder nas eleições de outubro.

Não é desprezível, porém, que, diante da possibilidade de retomada de um processo democrático levemente reformista, a direita brasileira venha, com tanta insistência e ênfase, acenando com a ruptura da ordem constitucional. É preciso deter-lhe o ímpeto.

***

A direita que joga nas quatro linhas – Paralelamente ao projeto golpista radical do bolsonarismo, a direita bem comportada, que não zurra, cuida de intervir no processo eleitoral, tentando domesticar a candidatura mais à esquerda, impondo-lhe toda sorte de condicionantes – a pauta de campanha, a escolha do vice e do comando da economia… – e oferecendo-lhe mimos para adiante cobrar a fatura. Como vimos, o arauto do altar global abriu a entrevista de Lula no JN concedendo ao candidato: “O senhor não deve nada à Justiça”. A esquerda liberal festejou, aliviada, ao ouvir a voz do patronato nativo, sem entender que ele simplesmente dizia: “Resolvemos, por ora, não insistir em patrocinar o processo de lawfare que o tirou do pleito de 2018 e o levou à prisão. Aguardamos mostras de gratidão.”

Morre o genuflexo – O anúncio da morte física de Mikhail Gorbachev, após décadas de ostracismo, traz à lembrança uma observação de Marx: “a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco [Luís Bonaparte] desempenhar um papel de herói”.

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 *Com a colaboração de Pedro Amaral

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