Espaço de memória para cultuar com flores e orações os entes queridos, refúgio de quem sai em busca de silêncio e contemplação, lugar para fantasias macabras criadas pela crendice popular. São múltiplas as impressões que cercam os cemitérios, seja nos grandes centros urbanos ou nos pequenos vilarejos. Para a pedagoga e filósofa Maria de Lourdes Caldas Gouveia, os chamados campos-santos são locais simbólicos universais, que abrigam alguns dos principais fundamentos para a compreensão das cidades, tema basilar de sua carreira acadêmica. Foi o interesse pelo cruzamento de tais assuntos – cemitérios e cidades – que motivou a pesquisadora a escrever “Cemitério do Bonfim”, 38º título da coleção “BH. A cidade de cada um” (Conceito Editorial), cujo lançamento acontece no dia 18 de março, sábado, das 10h às 13h, na Livraria Jenipapo. A entrada é franca e o livro será vendido por R$40.
“O cemitério refletindo a face da cidade como um espelho” foi o argumento escolhido pela autora para a redação do novo livro título da série idealizada pelos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião. “Ao passear pelas alamedas do Bonfim, o argumento se faz vivo. Você não somente olha a cidade, como encontra também os nomes daqueles que dedicaram os seus esforços para a edificação desse panorama, construído ao longo de mais de um século de trabalho, esforços e dedicação”, afirma Maria de Lourdes – ou Maria Gouveia, como é conhecida entre seus alunos e amigos.
“Galeria de arte”
As vielas percorridas pelo olhar privilegiado da pesquisadora decifram as obras de arte do Bonfim – o maior e mais antigo acervo escultórico de Belo Horizonte. Maria Gouveia elenca as lápides cuidadosamente talhadas em pedra e bronze por escultores muitas vezes anônimos, que não assinavam suas criações. “Existe uma quantidade considerável de esculturas de valor artístico inestimável. Cito dois túmulos dos mais significativos: o túmulo de Raul Soares e o de Olegário Maciel. Mas o conjunto de esculturas, múltiplo e de altíssima qualidade, se estende por todo o espaço do cemitério. As representações de anjos são muito bonitas e sensíveis. Também são encantadoras as esculturas de guirlandas, minuciosas e detalhadas”, ressalta.
Maria Gouveia recomenda, ainda, atenção especial para a “elegante e significativa” portada do Bonfim, encimada pelos dizeres em latim: Morituri mortuis. “Morituri somos nós, aqueles que vão morrer; mortuis são os que já se foram e que nos saúdam. São posições de duplicidade e de certeza das relações entre os vivos e os mortos”, explica a pesquisadora. “Ao deixar a cidade dos vivos e entrar no território sagrado da cidade dos mortos, os vivos rememoram seus mortos queridos em rituais funerários e evocam os deuses, em busca de conforto, diante de suas permanentes incertezas”, completa.
Entre profundas reflexões sobre a finitude inexorável e as peculiaridades da condição humana, a autora também traz aos leitores, numa narrativa bem-humorada e de fina ironia, as “histórias do Nosso Senhor do Bonfim”. Evocando as próprias memórias e as de Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Eunice Vivacqua, ela brinca com o medo que ronda os cemitérios e as lendas construídas no seu entorno pelo imaginário popular.
Como estudiosa das cidades, descritas por ela como seus “objetos de encantamento”, Maria Gouveia conheceu diversos lugares viajando pelo Brasil e pelo mundo afora, muitas vezes acompanhada por seus alunos. A pesquisadora os motivava a ver as cidades por meio da “educação do olhar” para, assim, apreender a verdadeira face de cada lugar, principalmente aqueles ricos em patrimônio artístico e cultural. Seus roteiros sempre incluem visitas a cemitérios – para muito além dos renomados Père-Lachaise e Montparnasse, em Paris (FRA), ou Recoleta, em Buenos Aires (ARG). “Há um, diminuto, numa cidadezinha, no interior da França, que se chama Douvenne. É todo florido e de organização muito simples. Reflete exatamente a minha hipótese do cemitério como espelhamento da cidade”, sublinha.
Para a melhor compreensão dos cemitérios como símbolo universal, a professora cita o historiador norte-americano Lewis Munford, (1895-1990) em seu livro “A cidade na história”. “Ele nos explica como a humanidade, ainda não sedentária, ao perder um dos seus, impactada pela morte, deixa o seu partícipe sob a terra ou em grutas, sob as pedras, e depois retorna a esse lugar para homenagear, para colocar flores, para constituir a memória do morto. Esse retorno vai se constituir em um dos fundamentos para as aglomerações e futuras cidades”, defende.
Sobre a autora
Maria de Lourdes Caldas Gouveia nasceu em 1937, em Garanhuns (PE), onde viveu até mudar-se para Recife. Na capital pernambucana iniciou sua vida acadêmica na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e prosseguiu os estudos. Anos depois, foi trabalhar e estudar em Belo Horizonte (MG), onde se radicou definitivamente em 1966. Da graduação ao doutorado na Espanha, trilhou caminhos da Educação e da Filosofia, até aposentar-se na PUC Minas.
Depois de tantos anos, embora cultive fortes relações com a terra natal, Maria Gouveia considera Belo Horizonte a cidade de sua eleição afetiva: “é a minha cidade”, diz ela sobre a capital de Minas Gerais, foco de suas pesquisas há mais de 20 anos. Esses estudos deram origem à série “Matéria da Memória, a cidade e seus símbolos”, que conta com cinco volumes sobre espaços icônicos da capital mineira.
Nos livros, são abordados o Palácio da Liberdade, a Praça da Liberdade, o Mercado Central, o bairro da Lagoinha e o próprio Cemitério do Bonfim. Nesse caso, a necrópole é apresentada em edição primorosa (Akala, 2015), que alia a erudição do texto da autora a um belo ensaio fotográfico sobre o conjunto artístico do Bonfim.
A coleção “BH. A cidade de cada um”
Desde setembro de 2004, a coleção “BH. A cidade de cada um” vem construindo a memória afetiva da cidade por meio de textos literários escritos por pessoas de diversas gerações, escolhidas por sua grande identificação com os temas trabalhados. Publicada pela Conceito Editorial e idealizada pelos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião, a série como ponto de partida suas vivências pessoais, eles falam sobre bairros, lugares, fatos e personagens diversos, sem o compromisso de se prenderem à história oficial, gerando grande empatia entre moradores e admiradores da capital mineira.
Fazem parte da coleção os seguintes 37 títulos: “Lagoinha” de Wander Piroli; “Mercado Central”, de Fernando Brant; “Estádio Independência”, de Jairo Anatólio Lima; “Rua da Bahia”, de José Bento Teixeira de Salles; “Fafich”, de Clara Arreguy; “Parque Municipal”, de Ronaldo Guimarães; “Praça Sete”, de Angelo Oswaldo de Araújo Santos; “Livraria Amadeu”, de João Antonio de Paula; “Sagrada Família”, de Manoel Lobato; “Pampulha”, de Flávio Carsalade; “Cine Pathé”, de Celina Albano; “Caiçara”, de Jorge Fernando dos Santos; “Carmo”, de Alberto Villas; “Lourdes”, de Lucia Helena Monteiro Machado; “Colégio Sacré Coeur de Marie”, de Marilene Guzella Martins Lemos; “Carlos Prates”, de Humberto Pereira; “Morro do Papagaio”, de Márcia Cruz; “Maletta”, de Paulinho Assunção; “Montanhez”, de Márcio Rubens Prado; “Santa Tereza”, de Libério Neves; “Serra”, de Nereide Beirão; “Padre Eustáquio”, de Jeferson de Andrade; “Centro”, de Antonio Barreto; “Mineirão”, de Tião Martins; “Colégio Estadual”, de Renato Moraes; “Santo Antônio”, de Eliane Marta Teixeira Lopes; “Viaduto Santa Tereza”, de João Perdigão; “Funcionários”, de Maria do Carmo Brandão; “Colégio Municipal”, de José Alberto Barreto; “Renascença”, de Ana Elisa Ribeiro; “Anchieta”, de José Márcio Vianna; “Arraial do Curral del Rei”, de Adriane Garcia; “Campus da UFMG”, de Heloísa Murgel Starling; “Venda Nova”, de Bruno Viveiros Martins; “Barro Preto”, de Chico Brant; e “Campo Alegre”, de Ricardo Aleixo.
SERVIÇO | BH. A CIDADE DE CADA UM (CONCEITO EDITORIAL)
Lançamento “Cemitério do Bonfim” – Maria de Lourdes Caldas Gouveia
Quando. Sábado, 18/3, das 10h às 13h
Onde. Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241 – Savassi)
Quanto. Entrada franca. O livro será vendido a R$40
Mais. www.bhdecadaum.com.br