Toda a História – a história do homem dominando a natureza – é a história da violência, segundo a narrativa dos vencedores. No Brasil, a história da força ocupante, comandada pela aliança da cruz com o bacamarte a serviço da escravidão e da acumulação do senhor de engenho de não seria diferente, nem distintas suas consequências. De princípio, projeto de pura exploração extrativista, alimentada pela escravidão de negros africanos e o genocídio dos povos originários, o domínio colonial impede a emergência de uma nação, como registra Auguste Saint-Hilaire, viajante francês que aqui esteve entre 1816 e 1822: “[…] A situação funcional dessa população pode ser resumida em uma palavra: o Brasil não tem povo”. O povo, dirá Capistrano de Abreu, escrevendo cerca de cem anos passados, “foi capado e recapado, sangrado e ressangrado”. Sua obra é do início do século passado, e seria relida por Darcy Ribeiro: “Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca da própria prosperidade. […] Nós, brasileiros, somos um povo sem ser, impedido de sê-lo”.
Sem povo e sem nação, sem projeto, fizemos país antes de sociedade; por séculos, longe de constituir uma comunidade de sentimentos, fomos um aglomerado de gente diversa, senhores e escravos, sem noção de pertencimento comum, negros e índios dominados por brancos de baraço e cutelo, senhores da vida e da terra, caminhando em território imenso aberto à exploração predatória. Na visão de Hilaire, uma população, apenas, carente de unidade quando o país já se preparava para sua emancipação. Ao cabo de 500 anos somos, ainda, uma nação por ser, uma expectativa: a profecia de Stefan Zweig que a perversidade da classe dominante transformou em maldição. País ainda em busca de seu destino, revela-se vincado pela truculência que, estruturada a partir da violência do Estado de classes, pervade toda a sociedade, como o denota a desigualdade econômica elevada a níveis ignominiosos.
O traço essencial da formação histórica persiste na contemporaneidade, a saber, o primado da ordem estabelecida, do poder concentrado, da ditadura da classe dominante de par com a ideologia da conciliação, arguida para impedir a ruptura que enseja o progresso. A presença de um passado renitente. Um horror às insurreições das massas, todas esmagadas com extremada violência, desde os primeiros quilombos a Canudos e Contestado, ainda no século passado. O único levante vitorioso, a chamada “revolução” de 1930, foi um movimento inter-oligárquico, liderado por três governadores de Estado e comandado por meia dúzia de oficiais superiores. A permanente rejeição à mudança, um espectro insondável que é substituído pela preservação do statu quo. Somos um projeto lampedusiano. Assim, não fizemos nem a revolução social, nem mesmo a revolução nacional. Nossa independência, como é sabido, decorreu de uma negociação inter-monárquica arbitrada pela Inglaterra, a custos altíssimos para a nova província; seguem-se quase 70 anos de um império alheio ao progresso. A classe dirigente imperial entrega o Estado aos herdeiros da casa-grande como indenização pelo fim da escravidão. Em 1889, um golpe militar levantado para depor o gabinete Ouro Preto (indisposto com a caserna), derruba a monarquia e institui, sempre sem povo, um regime pretensamente republicano que, na verdade, representava o retorno à tradição luso-brasileira de concentração de poderes em torno do chefe de Estado – antes imperador, doravante presidente da República e por muitos anos e em várias oportunidades, ditador.
Sérgio Buarque de Holanda, no seminal Raízes do Brasil, comentaria que a democracia, entre nós, foi sempre um mal-entendido. Ou, digamos, um regime que os militares jamais entenderam e que a classe dominante admite até o momento em que seus interesses podem (no seu imaginário) correr algum risco.
Diante da crise presente, esta que ameaça o governo recém ungido pela soberania popular, são alvitradas todas as lições da ciência política, a começar pela rainha de todas as artes, que é a conciliação, a negociação, a composição, o arrego e, até, a renúncia a projetos. Nessa equação não há espaço para o povo, que, em qualquer hipótese, pagará a conta histórica.
Contingências que não dominamos dizem-nos que pertencemos à “civilização ocidental e cristã”, e, por decorrência, somos peça da geopolítica militar sob o comando dos EUA. Dependentes, somos criticados quando intentamos uma política externa de simples não alinhamento automático com o Departamento de Estado. A globalização acelera o processo de desindustrialização e acentua o império do grande capital. O país pode ir mal das pernas, mas os especuladores vão sempre bem, porque seus negócios pouco dependem de nossa economia, internacionalizada como seus lucros.
Em entrevista recente (Folha de S. Paulo, 17/07/2023), o ministro da Fazenda diz-nos que o 1% de brancos multimilionários, que abocanha 25% do total da renda nacional, não paga impostos, se aplica em um fundo exclusivo, como também não paga impostos quem ganha R$ 2.640.000,00, mas paga imposto de renda o assalariado que percebe um piso de meros R$ 2.650,00. O Banco Central do Brasil – quartel da resistência antidesenvolvimentista – impõe-nos uma taxa Selic de 13,75% ao ano, o que equivale a juros reais de 10%, quando a inflação, em viés de queda, aponta índices de 3%. Nos EUA, modelo para tudo entre nós, com uma inflação de algo como 8% ao ano, os juros reais estabelecidos pelo FED giram em torno de 5 e 5,25%.
É de todo consabido que a política de juros altos, mais que caturrice de um burocrata poderoso, e ainda à solta, constitui atentado contra a economia nacional. Ela reflete a captura do Estado pela banca (que se convencionou chamar de “mercado”) e, portanto, sua exigência de que a economia do país, não importa quantas bocas precisemos alimentar, priorize a garantia do financiamento do capital financeiro. Não há possibilidade, qualquer, de recuperação nacional sem oferta de crédito, seja ao produtor (que está longe da Faria Lima), seja do consumidor. Juros estratosféricos e crédito constituem uma antinomia. A inflação está em queda, fala-se, até, em deflação, o dólar cai, mas o BC quer juros altos. Por quê? Porque, ele mesmo diz, teme a recuperação do mercado de trabalho. Para os Chicago boys, onipresentes no noticiário econômico, queda do desemprego é sinônimo de aquecimento do mercado, porque o aumento do número de trabalhadores empregados pode pressionar para cima os salários e produzir inflação. Em outras palavras, o que o BC persegue é o desemprego, a estagnação. Assim, temos governo e sociedade lutando pela criação de emprego e renda, e a grei de Roberto Campos Neto (que não nega suas origens) forcejando desemprego.
A grande imprensa, porém, defende tudo isso, como reclama quando Lula enfrenta a União Europeia na defesa do Mercosul. E critica as iniciativas visando à recuperação industrial, mesmo as mais tímidas, como a prioridade das compras governamentais.
É a vez de lembrar uma justamente esquecida ministra da Fazenda para quem, em sua política, o povo era apenas “um detalhe”. Este é o pano de fundo das negociações que se desenvolvem em Brasília e alhures, encoberto pela versão impressionista da grande mídia.
A república assiste, algo ausente, ao drama quase solitário do presidente Lula neste toma lá dá cá que começa a definir seu rumo, o governo possível, determinado pelas circunstâncias da política real: o império de uma correlação de forças que põe o governante à mercê do jogo imposto pelos derrotados nas eleições presidenciais, porque se aceita a correlação de forças como um determinismo, e não como uma contingência.
O sistema político-institucional governante está esgotado. Dessa evidência solar nos recusamos a tomar consciência, temerosos de assumir suas consequências.
Os derrotados governam. Porque são derrotados que, no entanto, controlam o Congresso, efetivo delegado do poder hegemônico que vem do engenho e da casa-grande e chega, imutável em 500 anos, à Faria Lima, filial do grande capital que nos governa de Washington, como já nos governou por mais de cem anos a partir da City de Londres. De lá manipula a vida brasileira – da economia à política.
Para permitir o governo democrático na sucessão do projeto protofascista (determinada pelo segundo turno de 2022), a direita que atende pelo codinome de Centrão, após ameaçar a governabilidade, exige agora a coabitação, que implica posição de mando de que decorre intervenção política no governo.
Se a frente ampla partidária montada por Lula para assegurar a vitória mostrou resultados, o mesmo não se pode dizer daquela, amplíssima, que o presidente arquitetou para governar. A direita quer mais. O país conhece as habilidades de Lula como negociador, mas ele se encontra diante de um fato concreto, que os estrategistas de centro-esquerda devem estar estudando: se ganhamos as eleições presidenciais, perdemos as eleições legislativas. Este juízo de fato cobra uma resposta.
Temos que nos lembrar do porquê de havermos depositado todas as nossas forças em derrotar eleitoralmente o protofascismo liberal (esse mostrengo brasileiro) e retomar o comando da administração pública, e assim lembrando retomar a batalha ideológica, a educação das massas, a denúncia do projeto da classe dominante e a defesa da alternativa popular.
Apenas dar fim às maiores aloprações bolsonaristas e recriar alguns bons programas de nossos governos anteriores – tarefas, sem dúvida, necessárias – não parece suficiente nem para enfrentar os desafios presentes, nem muito menos para fincar as bases de um projeto de longo prazo.
A extrema-direita, forte, espreita. E os representantes da casa-grande, a direita que não zurra, sabem muito bem colocar um pé em cada canoa – fazem isso há 500 anos, sem jamais cair. O desafio colocado pera a esquerda pode ser o de retomar suas origens; sem esquecer o aqui e o agora, pensar no médio prazo e retomar agora como prioridade a abandonada organização popular. Aí então, ao invés de objeto, o povo assumirá seu papel de agente histórico.
O que não podemos é perder sem lutar.
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Mau passo – Não é adequado, nem conveniente, o ministro da Fazenda do Brasil se permitir dissertar, em entrevista, sobre como deve se dar o processo eleitoral na vizinha Venezuela – país com o qual desejamos, assim entendo, normalizar relações. Será que todo membro do primeiro escalão do governo brasileiro pode, agora, se sentir à vontade para dar palpite sobre o sistema político dos EUA? Ou da China? Da Rússia? Ou, ainda, da Turquia, do Irã e da Arábia Saudita? Ou vamos naturalizar a noção de que de algumas nações amigas, decerto não todas, podemos tranquilamente puxar a orelha em público, para o gozo de folhas e pasquins?
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*Com a colaboração de Pedro Amaral