Lá atrás, no início da década de 90, quando eu fui designado para servir na antiga Polícia Florestal e de Mananciais, se dizia nos cursos de especialização que a supressão de vegetação de mata atlântica no Brasil e no estado de São Paulo seguia em passos largos e que no ano 2000 (bug do milénio) nós teríamos no máximo 3% do que havia originalmente.
Nessa época, nada se falava sobre atropelamento de fauna.
Percebam que hoje, passados mais de 30 anos, São Paulo avançou. Reverteu a curva de desmatamento de mata atlântica e, também, de cerrado. Estamos com 22,9% de vegetação de mata atlântica, conforme o último inventário divulgado pelo Instituto de Pesquisas Ambientais.
Esses dados positivos não são por acaso. Eles decorrem de um enorme esforço de regulação, de comando e controle – licenciamento rigoroso, de compensações ambientais, mitigações ambientais, restaurações ecológicas, e muita, muita fiscalização, não apenas no âmbito do estado, mas também pelos municípios, que são os órgãos locais do Sistema Nacional de Meio Ambiente.
Por que estou mencionando isso? Porque a visão de futuro de ontem é o que está acontecendo hoje. Hoje estamos, como diria o então Secretário Chico Graziano, esverdeando cada vez mais o mapa do Estado de São Paulo. Esse era um dos mantras de sua gestão.
Assim, quanto mais verde o mapa paulista, com unidades de conservação e formação de corredores ecológicos, a partir das reservas legais instituídas e áreas de preservação permanente restauradas mais fauna silvestre estará nesses ambientes. É isso, então, que torna esse tema Atropelamentos contra a Fauna Silvestre tão oportuno e uma demanda permanente. Um parênteses aqui: tecnicamente, o correto seria falarmos de colisão e não de atropelamento, uma vez que entendemos que não há intenção e nem sempre é propriamente um atropelamento. Mas em nome de facilitar ao público, ficamos assim.
Acredito que, no que diz respeito à fauna silvestre, esse é um daqueles temas dos mais importantes e que tende a gerar uma política pública efetiva.
Então, nessa abordagem, me parece que não teria muito sentido todo esse esforço se continuarmos a perder os milhões de animais silvestres todos os anos.
Eu li um estudo recente da Universidade de Lavras com dados de 450 milhões de vertebrados atropelados anualmente no Brasil, 17 a cada segundo. É um número assustador.
Apenas como parâmetro de comparação, pese ser situações diversas, a PM Ambiental paulista tem um número histórico de apreensão anual de animais oriundos do tráfico de animais silvestres da ordem de 30 mil por ano. São situações diferentes e, também, há as subnotificações como acontece nos atropelamentos, mas a disparidade dos números nos faz pensar sobre os temas e o foco de atuação.
Um outro aspecto muito relevante é o de que todos nós temos o direito de ir e vir nas rodovias com segurança e obviamente cumprindo as leis de trânsito e os animais nas pistas, sejam eles silvestres ou domésticos, são um fator de risco de vida aos usuários.
Ao mesmo tempo, incumbe ao poder público, nos termos do Inc. VII, § 1º do art. 225 da Constituição Federal proteger a fauna e a flora vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade. Hoje, entendemos cada vez mais, pelos números de atropelamento, que as rodovias podem sim ser um fator de extinção das espécies e, também, de crueldade animal.
Então, é um balanço de direitos e deveres que estamos conversando aqui. É superimportante termos noção desse equilíbrio: direito de ir e vir, com respeito às leis de trânsito e segurança e proteger a fauna de atropelamentos.
Eu destaco por esse motivo duas percepções sobre o tema:
Pauta nova – A primeira, neste estágio de conhecimento que temos hoje, ainda não há uma receita conclusiva para a melhor solução aos atropelamentos. A preocupação com o tema é relativamente recente. Em São Paulo, temos normas da Cetesb desde 2018. São recentes também os estudos da academia que vem desde 2017. E o desenvolvimento de tecnologias para a melhor compreensão e prevenção dos atropelamentos, como os radares inteligentes com avisos eletrônicos aos usuários. Ainda é muito embrionário!
Trabalho conjunto – O segundo é que o trabalho envolvendo mecanismos de prevenção aos atropelamentos de animais em rodovias é interagência como a maior parte dos temas ambientais. Ele envolve uma série de atores, desde o órgão de controle, licenciador, no nosso caso a CETESB, as concessionárias, onde os trechos estão delegados aos operadores, os gestores públicos nos trechos não concessionados, os cidadãos usuários e também as forças de segurança que têm atribuição sobre os trechos, que são a Polícia Militar (pelo policiamento rodoviário, ambiental e também de bombeiro), a Polícia Rodoviária Federal nas rodovias federais e também, em muitos casos, as Guardas Municipais, naqueles trechos que interseccionam municípios com áreas verdes urbanas, muito comum no Vale do Ribeira e também no Oeste Paulista, região pós Presidente Prudente.
Aqui faço uma rápida abordagem sobre a atuação da Polícia Militar sobre o tema.
Quando falo da Polícia Militar estou tratando de todas as suas áreas de atuação (rodoviária, ambiental, bombeiros e ostensivo geral) e de sua linha de múltiplos atendimentos aos cidadãos. Ou seja, mesmo que aquele assunto não seja especificamente o de sua responsabilidade, a Polícia Militar irá buscar uma solução.
Nós tivemos uma novidade, em dezembro de 2023, com a edição da Lei Orgânica das Polícias Militares (Lei federal nº 14.571, de 12 de dezembro de 2023), que foi a inserção dela no Sistema Nacional de Meio Ambiente –SISNAMA (letra “d” do § 3º do art. 2º da lei), além dela também integrar o Sistema Nacional de Trânsito.
É natural, então, que as ações que ela já vem adotando em casos de prevenção e atropelamentos efetivos passem a ser mais sistematizados e compartilhados com os demais responsáveis pelo tema.
Tivemos recentemente o lançamento de uma obra do Major PM Marcelo Estevão, do 4º Batalhão Rodoviário, que tratou do novo olhar da Polícia Militar sobre os sinistros envolvendo animais, que é a conclusão do seu mestrado e indica exatamente a renovação da preocupação institucional sobre o tema.
E como as forças de segurança podem ampliar sua contribuição ao assunto? Como já disse, elas estão na pista todos os dias e são milhares de servidores públicos. Obviamente, o foco é a segurança pública, onde está incluída a prevenção aos acidentes e nestes os riscos de colisões e por vezes, até o resgate dos animais atropelados.
Nós sabemos que sem dados não há análise estatística e as soluções possíveis deixam de ser científicas e passam a ser meramente empíricas. Como as polícias e guardas municipais geram dados de sua atuação também envolvendo atendimentos de fauna nas pistas (local, tipo de atendimento e muitas vezes tiram fotos) é necessário estabelecer um fluxo e definir quais dados são essenciais para aperfeiçoar a proteção aos animais e evitar riscos aos usuários. É uma contribuição importante para o sistema.
Minha sugestão é a de que se estabeleçam as cooperações com as forças de segurança para padronização dos dados e dos fluxos. No caso do estado de São Paulo, muito oportuno que a destinação final seja para a Coordenadoria de Fauna Silvestre, responsável pela formulação de políticas públicas de proteção dos animais e à CETESB, em conjunto, responsável pelo licenciamento e licenças de operações renováveis desses empreendimentos.
Enfim, se soubéssemos a quantidade de animais atropelados anualmente em nossas estradas já teríamos nos debruçado sobre a questão há muito tempo, mas que seja agora! Mais tarde do que nunca significa menos pessoas e animais mortos!