Este modesto texto é dedicado à memória da Jornalista Vanessa Ricarte, a segunda vítima conhecida [porque não conhecemos o índice de subnotificação] num estado em que o ódio e a intolerância campeiam soltos em instituições cujos dirigentes, como cidadãos e servidores públicos, devem observância ao que estabelece o arcabouço jurídico do Estado Democrático de Direito, vigente desde 5 de outubro de 1988, com a Constituição Cidadã.

Foto: Divulgação
Quantas Marias não mais estão neste carnaval? Ainda que fora da folia, quantas Marias não estão entre nós, no convívio com seus familiares? Que direito sobre-humano têm os seus algozes para lhes tirar a Vida? O ódio e a intolerância, que tornaram o ambiente coletivo nos últimos anos irrespirável, têm alimentado essa nefasta conduta, esse nefasto conceito de sociedade, em que só os narcisos se reconhecem. Aquela diversidade generosa e digna da sociedade brasileira se perdeu. Aquela graça de vermos a variedade de modos de Vida e de comportamentos se dissolveu, como antiácido em copo d’água.
Sabemos que há uma subnotificação, de taxas desconhecidas, dos números oficiais sobre as vítimas de feminicídio e sobre as sobreviventes. E também sobre órfãos e dependentes vitimados pelo trauma. Ainda as instituições municipais e estaduais, que estão na ponta do Sistema de Garantia de Direitos e da Rede Jurídico-Social de Proteção, construída com tanto denodo por nossas gerações ao longo de décadas, desde antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, não se articularam e efetivaram os protocolos emanados há pelo menos quinze anos. [Corumbá e Ladário, na verdade, também estão em débito com a cidadania, não por acaso nosso glorioso FORUMCORLAD foi defenestrado precisamente quando os gestores municipais haviam sido eleitos e reeleitos pelo partido de Lula. Ou creem termos ignorado o drama da menina e dos familiares de Lívia, desaparecimento que expõe não apenas a fragilidade da rede, mas a hipocrisia reinante em nossa sociedade?]
A História saberá cobrar a omissão de todo servidor, de todo cidadão e de todo omisso que por qualquer razão não se empenhou ou não cobrou o suficiente, em todos os casos em que o algoz — ou a rede de algozes — encontrou meios de executar sua mórbida ação ou saiu impune dela. Se prestarmos atenção, os mesmos que hoje enxovalham o Estado Democrático de Direito com suas patranhas e perversidades — inclusive disseminando fake news criminosamente, fazendo-se de inocentes — são os que cinicamente participam, por ação ou omissão, desse odioso e perigoso ambiente em que, sobretudo, são mulheres as maiores vítimas (além de seus filhos, pais ou dependentes, igualmente atingidos pela tragédia que só tende a crescer diante de nossos olhos indignados).
COMPOSIÇÃO DE 1967
O título deste modesto texto nos remete ao nome da composição de Luiz Carlos Paraná, samba com riqueza metafórica singular, um recurso semântico próprio da época para driblar a censura e seus sombrios agentes. A versão mais conhecida foi a interpretação de Roberto Carlos, que a defendeu no III Festival de Música Popular Brasileira da antiga TV Record, em 1967, no qual se classificou em quinto lugar. Talvez o único, senão o primeiro, samba interpretado pelo ‘rei’, que, além de não se posicionar contra a ditadura, era ídolo ascendente da Jovem Guarda, um gênero filiado ao Iê-iê-iê dos Beatles, que em muitos países era sinônimo de rebeldia, diferentemente do Brasil, sob censura.
Roberto Carlos, embora tivesse feito muito sucesso com o samba — há quem diga que ele tenha sido recordista de vendas em seu tempo (isso deixarei para pesquisadores da MPB, como meu Amigo Juvenal Ávila de Oliveira) –, depois da eternização de seu compositor, Luiz Carlos Paraná, em 1970, o ídolo da Jovem Guarda não mais cantou essa bela canção. Muitos dizem se tratar de denúncia da mortalidade infantil, pois durante a ditadura era proibido explicitar essa tragédia social. Não me esqueço que em aula de Estudos de Problemas Brasileiros (EPB), na ex-FUCMT, ainda sob o regime de 1964, questionei o então vereador campo-grandense Yvon do Egito Filho (líder da Arena), palestrante convidado pela saudosa Professora Thiê Yegushi dos Santos, titular da disciplina, mas ele respondeu em tom de advertência que a questão não podia ser debatida por estudantes, apesar do tema de sua palestra ser “As conquistas sociais dos 15 anos da Revolução de 31 de Março”.
Se em 1979 isso ainda era tabu, imaginem em 1967, quando o festival foi realizado, sob nítida tensão, em ambiente tomado pelas mobilizações antiditatoriais. Só pelo título da canção de Luiz Carlos Paraná dá para compreender que há um questionamento explícito em sua composição metafórica e melancolia indisfarçável. Roberto Carlos prestou grande serviço à resistência democrática quando defendeu a canção em festival de tamanha relevância. Pode-se perceber, aliás, a mudança de atitude da plateia à medida em que a canção era apresentada: os jovens que vaiavam o ídolo da Jovem Guarda, entendendo a mensagem, pararam as vaias e ao final aplaudiram o cantor e o grupo que o acompanha.
1968 foi o ano que, segundo o Jornalista Zuenir Ventura, não acabou. Emblemático ano em que a juventude foi às ruas enfrentar fascistas cínicos que tomaram de assalto o golpe civil-militar de 1964: primeiro matando o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que rompeu com eles ao querer devolver o poder aos civis, quando seu avião monomotor ‘colidiu’ com um jato da esquadrilha da fumaça cujo piloto sobreviveu; a seguir, cassando civis que participaram do golpe, entre eles Carlos Lacerda, o eloquente e bem articulado líder do golpe; depois golpeando o segundo marechal, Arthur da Costa e Silva, que teria sido ‘acometido de um AVC’, só que não, segundo denúncia de sua viúva, Yolanda Costa e Silva, e ao morrer não assumiu o vice Pedro Aleixo, civil, mas a junta militar que surge do nada e da qual sairia sagrado ‘presidente’ o facínora Emílio Garrastazu Médici, o mais temido general do ciclo militar.
A EDUCAÇÃO LIBERTA
Diferentemente do que pregam os fanáticos seguidores do fascismo e sionismo, em que a doutrinação é a ferramenta de sua formação, somente a educação laica e sinceramente exercida sob os paradigmas posteriores ao Iluminismo oriental e ocidental [cada qual em seu momento histórico] é que será possível assegurar bases sólidas para uma formação emancipadora das novas gerações. E para isso é urgente que, independentemente das posições partidárias, filosóficas ou religiosas, nos irmanemos em projetos consistentes por uma sociedade de valores sólidos e de respeito à diversidade, seja étnica, cultural e, em especial, ambiental.
Eis por que precisamos gostar de ler, de artes e culturas (assim, no plural) e, sobretudo, de história. Quando vemos os atuais algozes da democracia por todos os cantos do planeta surrupiando o direito da juventude e da infância de conhecer sua história, suas culturas e suas artes — além de incentivar a não ler e a não pensar, obviamente — devemos acender o sinal de alerta, pois o processo civilizacional está em risco de ser destruído. Parece algo dispensável, desnecessário, no entanto, a humanidade levou dezenas de milênios para construí-lo. Sem esses valores, fundamentais para a sobrevivência da humanidade, o que nos espera? A barbárie, o que para os fascistas, sionistas, fundamentalistas e assemelhados é o sonho, a meta, por razões que só o desvario e a perversidade humana justificam.
Aliás, é nesse contexto que projetos inovadores, inclusivos e integradores como a proposta da futura Universidade Federal do Pantanal, pela qual o Movimento UFPantanal tem sido incansável fomentador e mobilizador, são oportunos e imprescindíveis. Além de alavancar um futuro sustentável à nossa região, preterida há décadas das prioridades regionais e nacionais, projetos transformadores focados na formação das novas gerações são fatores seguros e perenes das sociedades conectadas à contemporaneidade e com respostas para os desafios deste momento sombrio da história humana.
Ler, estudar e lutar pela Universidade Federal do Pantanal (UFPantanal), pois, é estar conectado à realidade. Mais que uma instituição necessária e com a cara do bioma e das populações do Pantanal, trata-se de uma resposta à altura dos desafios de toda a espécie humana, cujos maiores detratores são os pseudolíderes inspirados em Hitler, Mussolini, Salazar, Franco et caterva. Por quê? Porque a luz que dissipa as trevas é a mesma que permeia o horizonte fecundo e transformador.
Basta recorrer à História e compreender em profundidade este fato, este processo. Basta ler. Basta pensar. Basta estudar para se libertar do atraso, das mentiras e, sobretudo, das trevas que por séculos teimam por impor às imensas maiorias da humanidade. Porque mantê-las no primarismo, na desqualificação profissional, na invisibilidade humana é a fórmula do sucesso das potências ocidentais que hoje, para não sucumbir ante o surgimento de novas potências tecnológicas, querem nos submeter a uma nova colonização. Quem tiver alguma dúvida, basta entender em profundidade o noticiário de qualquer mídia, seja corporativa ou independente. Só tome o cuidado de não cair no conto de vigaristas fazedores de fakenews.
*Ahmad Schabib Hany