Fortaleza (CE) – A Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME) retirou os livros infantis “E o medo, que medo tem?” e “Alfabreto” da coleção “Prosa e Poesia” antes de entregar o kit para ao menos nove escolas municipais. A coleção tem, originalmente, 12 obras e é distribuída pela Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) como parte do Programa de Aprendizagem na Idade Certa (Mais PAIC).

Foto: Divulgação
A censura dos livros está sendo investigada pelo Fórum de Educação Infantil do Ceará e por Ana Paula Marques, autora de “E o medo, que medo tem?”. Eles coletaram relatos de professores e estão recebendo quaisquer informações relevantes para entender os motivos da remoção das obras. “Os kits chegaram nas escolas com o plástico aberto e contando apenas com os outros 10 exemplares da coleção”, conta Ana Paula.
Até o momento, as escolas que receberam a coleção “Prosa e Poesia” sem as obras “E o medo, que medo tem?” e “Alfabreto” foram: CEI Ana Amélia Bezerra, CEI Francisco Eurivá Matias, CEI Franscisco Sales Fernandes, CEI Professora Maria do Socorro Ferreira Virino, CEI São Rafael, Escola Municipal Dom Hélder Câmara, Escola Municipal Imaculada Conceição, Escola Municipal Projeto Nascente e Escola Municipal Raimundo de Moura Matos.
Contra a censura e apoio de educadores de todo o Brasil
Além de apurar o ocorrido, Yuri Picolo, professor e membro do Fórum de Educação Infantil do Ceará, também criou um abaixo-assinado na Change.org para se opor à censura dos livros paradidáticos e pedir que as duas obras sejam imediatamente entregues a todas as escolas. Em apenas três dias, a petição reuniu mais de 1.100 assinaturas: change.org/LivrosCensuradosCE
No texto do abaixo-assinado na Change.org, Yuri explica que os 12 livros da coleção “Prosa e Poesia” foram editados e publicados pela própria Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc) após serem selecionados por um concurso literário regido por editais públicos: “São obras que passaram por rigorosos processos de avaliação”.
“A petição tem o apoio de pessoas de todas as regiões do Brasil, inclusive de vários nomes importantes da área da Educação Infantil, como Lea Tiriba, Patrícia Corsino, Clotilde Rossetti Ferreira, Lívia Fraga Vieira, Maria Carmen Barbosa, Mônica Batista, Ângela Barreto e muitas outras”, afirma Ana Paula.

lustração de “E o medo, que medo tem?”, feita por Cris Soares
Críticas de deputada estadual: religiões de matriz africana e “ideologia de gênero”
Os dois livros têm sido criticados pela deputada estadual Doutora Silvana (PL) na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), e ela encaminhou dois requerimentos pedindo “a imediata suspensão de veiculação em redes e no modo impresso” dos dois livros.
No texto do requerimento 313/2025, que trata de “Alfabreto”, obra de Georgiana Neves, ela escreve: “Existe uma problemática violenta no uso de livros paradidáticos ensinando de forma lúdica as religiões de matrizes afro. […] Vemos nitidamente que as religiões de matrizes afro são colocadas em posição de destaque em detrimento das demais“.
No abaixo-assinado na Change.org, o Fórum de Educação Infantil do Ceará explica que os editais de seleção do PAIC cumprem a Lei 11.645/2008, que estabelece que “conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras“.
Já no requerimento 312/2025, a deputada critica uma ilustração de “E o medo, que medo tem?” que mostra uma criança negra de cabelos curtos vestindo uma roupa de balé cor-de-rosa: “Não é adequado ver um menino vestido de bailarina […], um menino nem imaginaria se vestir assim”. Em um vídeo publicado em suas redes sociais sobre o livro, ela acusa o governo estadual de promover “ideologia de gênero”.
Cris Soares, ilustradora de “E o medo, que medo tem?”, afirma: “A intenção era colocar uma representação que pudesse ser lida de diferentes formas. Por exemplo, uma menina de cabelos curtos e que não gosta de usar laços, ou um menino que desejou se vestir com roupa de balé. Quis romper com padrões que estabelecem que meninas não podem ter cabelos curtos e que meninos não podem usar rosa ou determinadas vestimentas“.
“A ilustração que a Cris produziu também dá a possibilidade de realizar uma leitura de que há uma criança, independente do gênero, em um jogo simbólico de faz de conta. A criança está com os braços abertos para cima em um banco alto. No momento do livro em que a ilustração aparece falamos sobre o medo de altura”, complementa Ana Paula. A mesma criança aparece no final do livro, onde podemos ler: “O maior medo que o medo tem é de quem cria coragem”.
Ainda não está claro para o Fórum de Educação Infantil se a retirada dos livros foi resultado direto das críticas da deputada estadual, já que os requerimentos protocolados não possuem efeito imediato.
Em nota à Folha de S. Paulo, a Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc) afirmou que os dois livros fazem parte do acervo das escolas de educação infantil e obedeceram a todos os critérios de seleção do edital realizado em 2022, “tratando de temáticas de relevância para a formação respeitosa das crianças cearenses, prezando pelo bem-estar e promovendo a equidade entre educandos e educadores“. Já a prefeitura alegou à reportagem que houve uma falha na distribuição dos livros, e afirmou que os dois exemplares serão distribuídos às escolas que não os receberam.