Muitos já ouviram falar da “Trilogia do Alumbramento”, uma série de canções de Paulo César Pinheiro em parceria com João Nogueira. Certamente teria que separar esta história em mais partes. Esta semana escolhi para contar a história de uma música, na verdade um encanto de canção e que, considero “um hino” e a letra, me deixa sempre que ouço, ainda mais perplexo, pois esta grande dupla consegue fazer rolar algumas lágrimas pelo canto dos olhos dos filhos! São muitas lembranças… e quem não as tem? Imaginem cantar “pois me beijaram a boca e me tornei poeta” é uma das “imagens” mais fortes que já tive oportunidade de ouvir.
Na lembrança gravada por Moacir Silveira, é o próprio Paulo César Pinheiro, na época, esposo de Clara Nunes, quem conta a história desta canção e de como foi convidado pelo cantor e compositor João Nogueira para ser seu parceiro na música “Espelho”. “Um dia, no início de 1972, passou em mina casa em São Cristóvão, para me buscar pras noitadas. Até então nunca se falou em parceria. Era apenas amizade e vadiagem. Nesse dia mencionou um samba em homenagem ao pai, de melodia pronta, mas em cuja letra empacara. Não conseguia sair do que já escrevera. Queria saber se eu não topava dar um jeito. E me mostrou. Era realmente lindo. – João – eu disse – deixa de ser preguiçoso. Se você chegou até onde chegou, você termina sozinho. Mas ele cismou que estava bloqueado, que verso nenhum vinha mais, que era difícil falar do velho, sua adoração maior, e que no refrão, o mais importante em sua opinião, nem tinha ideia do que escrever. Peguei o gravador e registrei nele o que seria nossa primeira parceria.
Ele começava assim: ‘Nascido no subúrbio nos melhores dias Com votos da família de vida feliz Andar e pilotar um pássaro de aço Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço Com as fardas mais bonitas desse meu país O pai de anel no dedo e dedo na viola Sorria e parecia mesmo ser feliz’ E aí eu entrei na primeira vez do refrão: Eh, vida boa Quanto tempo faz Que felicidade! E que vontade de tocar viola de verdade E de fazer canções como as que fez meu pai (Bis) E continuava o João ainda na segunda vez da primeira parte: ‘Num dia de tristeza me faltou o velho E falta lhe confesso que ainda hoje faz E me abracei na bola e pensei ser um dia Um craque da pelota ao me tornar rapaz Um dia chutei mal e machuquei o dedo E sem ter mais o velho pra tirar o medo Foi mais uma vontade que ficou pra trás’ Parti então pra segunda vez do refrão: Eh, vida à toa Vai no tempo vai E eu sem ter maldade Na inocência de criança de tão pouca idade Troquei de mal com Deus por me levar meu pai E tomando gosto, fui em frente na terceira vez da primeira até o refrão final: E assim crescendo eu fui me criando sozinho Aprendendo na rua, na escola e no lar Um dia eu me tornei o bambambã da esquina Em toda brincadeira, em briga, em namorar Até que um dia eu tive que largar o estudo E trabalhar na rua sustentando tudo Assim sem perceber eu era adulto já Eh, vida voa Vai no tempo, vai Ai, mas que saudade Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade E orgulho de seu filho ser igual seu pai
João ainda retorna antes de terminar, fazendo mais três versos: ‘Pois me beijaram a boca e me tornei poeta, mas tão habituado com o adverso, eu temo se um dia me machuca o verso’ E eu arremato com chave de ouro: E o meu medo maior é o espelho se quebrar E batizo: “Espelho” Estava assim inaugurada uma parceria de peso na história do samba.” (No livro: “História de Minhas Canções” de Paulo César Pinheiro, páginas 54/56, Ed. Leya, 2010) “Espelho” é, portanto, um samba canção, com características autobiográficas e peculiares. Nele o saudoso compositor João Nogueira, em parceria com o grande poeta Paulo César Pinheiro, mostra todo o seu talento e veia poética ao nos apresentar em forma de música um pouco de sua história pessoal, mas que encaixa na vida de tantas outras vidas, porque a saudade … é saudade. Filho do advogado e músico João Batista Nogueira e irmão da também compositora Gisa Nogueira, cedo tomou contato com o mundo musical. Logo aprendeu a tocar violão e a compor em parceria com a irmã. Aos 17 anos já era diretor de um bloco carnavalesco. Em 1970 Elizete Cardoso ouviu “Corrente de Aço” uma composição sua e resolver gravá-la. Foi assim que o Brasil conheceu um dos maiores nomes de nossa música popular. Na família Nogueira o talento musical parece ser genético e passa de pai para filho. E felizmente a saga continua com Diogo Nogueira, que eu conheci em Bonito/MS, dando sequência a essa herança. Confirma o acerto da própria letra desta bela melodia e mantém intacto o “Espelho” familiar. Quiçá se outras famílias conseguissem isso. União, Tradição e a busca da felicidade em um só caminho.
(*) Crítico Musical