Fatos recentes esclarecem ainda mais que um dos mais importantes grupos de interesse em ação na crise brasileira é o Partido Operação Lava Jato (POLJ). Ele não possui registro eleitoral, mas tenta influenciar as próximas eleições, principalmente a de 2018, com o mesmo espírito de soberania que uma corte de magistrados clericais, autoridade decisória máxima em uma teocracia, tem sobre os destinos das nações onde o povo e seus direitos estão subordinados à liderança religiosa, proprietária monopolista da moralidade nacional. O POLJ, braço investigativo-jurídico da coalizão neoliberal-conservadora, quer expelir, de fato, seu principal adversário da competição política democrática e abrir caminho para seus aliados no sistema partidário stricto sensu, a começar pelo PSDB, que é a vanguarda institucional dos interesses do modelo financeirizado e excludente de capitalismo que a oposição deseja restabelecer no Brasil. Aliás, o PSDB já solicitou à Procuradoria Eleitoral a cassação do registro de direito do PT. O braço de comunicação política do POLJ e da coalizão neoliberal como um todo é a grande mídia oligopolizada.
Os líderes do referido grupo de interesse são uma pequena minoria organizada, uma elite dotada de recursos de poder e disposição de luta. Consideram-se semelhantes aos clérigos das teocracias em sua missão purificadora e atuam organizadamente no aparato do Estado: Justiça Federal, Procuradoria Geral da República, Polícia Federal e Ministério Público do Estado de São Paulo. Possuem canal de TV e outras mídias. Como encarnações de emanação divina portadora de pureza moral e zelo pelos bons costumes, usam a força, a autodenominada força-tarefa, com seus instrumentos coercitivos, para implementar um programa de uma nota só: combater a corrupção nos governos petistas com a intensidade necessária para que Dilma seja deposta, por impeachment, cassação ou renúncia, e Lula seja impedido de concorrer ao próximo pleito presidencial.
O combate à corrupção é importantíssimo para a melhorar a qualidade da democracia e a Lava Jato possui aspectos inovadores e salutares, a começar por ser a maior operação já realizada na história do Brasil, tendo na linha de frente judicial uma Justiça Federal de primeira instância, no Paraná, que condenou empresários de grande porte, ex-diretores e ex-gerentes da Petrobras, entre outros réus. Ademais, 53 políticos estão sob investigação da PGR e o STF acaba de tornar Eduardo Cunha réu. Aparentemente, a operação caminharia no sentido de avançar no caráter cego justiça e, portanto, na igualdade democrática perante a lei.
No entanto, cada vez mais a operação explicita a subordinação da repressão aos crimes contra a administração pública ao objetivo político, saindo da esfera do interesse público e ingressando no campo dos grupos de interesse. Exemplos: ao menos em dois acordos de delação premiada, os de Carlos Alexandre de Souza Rocha e Fernando Moura),o nome de Aécio Neves foi citado e associado a propinas volumosas, mas, até agora, ele não é objeto de investigação e nem do denuncismo midiático; as mesmas empresas envolvidas na Lava Jato, que contribuíram para a campanha de Dilma, financiaram também a do PSDB, mas a investigação é exclusivamente focada no campo petista; ex-diretores da Petrobras, condenados, declararam que o esquema de pagamento de propinas das empreiteiras remonta ao governo FHC, mas o POLJ não se importa com isso etc.
As evidências da partidarização do combate à corrupção já apareceram no contexto das eleições de 2014. Ao se olhar para as ações da coalizão conservadora-neoliberal como um todo, há tempos salta aos olhos que o objetivo maior de seu braço policial-jurídico-midiático, no qual o juiz Sérgio Moro e outros líderes do POLJ participam com suas supostas mãos limpas, é capturar Lula. Trata-se de um programa de justiça seletiva quanto aos fins e aos meios, portanto, não universal, partidária; enfim, é um programa político. Assim, os méritos da Lava Jato vão descendo pelo ralo do interesse político casuístico, conforme demonstram os últimos acontecimentos.
Com um programa conservador e onipotente, as lideranças poljistas pelejamo quanto podem para transformar o semblante do Estado de Direito em sua própria imagem e semelhança, metamorfoseando-o, portanto, em Estado da Direita, ao jogar na lata do lixo a igualdade perante a lei, a isonomia política, o direito à ampla defesa e ao contraditório, a presunção de inocência, o habeas corpus, o respeito à imagem dos investigados, alguns deles escolhidos a dedo etc. Na ação penal 470, seus aliados pioneiros nesse sectarismo puritanista e seletivo lançaram mão, casuisticamente, da teoria do domínio de fato para pescar peixe grande. Entre os excessos atuais, há abuso em prisões preventivas e buscas e apreensões, vazamentos seletivos de informações, inclusive as obtidas em delação premiada, criação de um clima de pré-julgamento por meio da espetacularização midiática das investigações etc. O país vive um clima autoritário de linchamento, induzido pelo POLJ, e o maior alvo são os petistas.
O ápice das violações aos direitos civis foi a condução coercitiva do ex-presidente Lula, demandada pela PGR, autorizada por Moro e executada pela PF, tudo com uma justificativa completamente nonsense: evitar tumultos. Além de sua questionadíssima legalidade – por contrariar o disposto no Art. 260 do Código do Processo Penal e o Art. 5º da Constituição Federal –, a condução coercitiva não evitou tumultos, pelo contrário, acirrou os ânimos no país. Alguns falam até em venezuelização, referindo-se à disputa entre atores políticos que perdura há vários anos no país do falecido Hugo Chávez. Ademais, ao menos por ora e em certa medida, o tiro saiu pela culatra, pois a desastrosa operação vem recebendo críticas em uma dimensão até então inédita.
Enquanto jornais e jornalistas comprometidos com a coalizão conservadora apregoam que a condução coercitiva de Lula atesta que o Brasil possui Estado de Direito e ninguém está acima da lei, o ministro do STF, Marco Aurélio Mello, disse que ela foi um “ato de força”, um atropelamento das regras. José Gregori, ex-ministro da Justiça de FHC, viu exagero na medida. O investigado nem sequer havia sido intimado para o interrogatório. Ademais, Lula nem precisaria ter falado diante da PF, poderia ter permanecido calado. O ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira afirmou que o STF deve intervir na Operação Lava Jato, que está violando direitos fundamentais. Enfim, Lula sofreu restrição em sua liberdade por parte do Estado, uma violência entre tantas que estruturam a realidade brasileira, mas que, pelo sectarismo dos clérigos da anticorrupção seletiva, atingiu um dos principais ex-presidentes da história desse país, de modo absolutamente desnecessário, a não ser para armar o vergonhoso espetáculo midiático previamente organizado entre o grupo de interesse aqui denominado de POLJ e seus aliados nas corporações de comunicação. Como disse o professor Wanderley Guilherme dos Santos, é hora de dar um basta aos abusos da Lava Jato. Política para quem precisa de política. O Estado Democrático de Direito precisa dela.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e VisitingResearcheAssociate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)