Nenhum médico minimamente bem formado quer internar paciente desnecessariamente. Todos sabemos que a internação é uma medida necessária quando o quadro clínico requer certos cuidados especiais. Assim, nenhum médico, sempre minimamente bem formado, deixaria de recomendar internação para uma pessoa atropelada com traumatismo de crânio, ou um infartado cardíaco, ou diante de apendicite supurada.
No caso da Psiquiatria, nenhum psiquiatra minimamente bem formado deixaria de recomendar internação para certos doentes mentais, por exemplo, os que estão em flórido surto psicótico ou quando se trata de grave risco de suicídio.
Doença mental é uma doença como outra qualquer; porém, no caso das enfermidades físicas, o mal está predominantemente na res corporea (corpo), ao passo que na doença mental, incide na res cogitans(mente). Isso tem algumas implicações: o médico do corpo, quando solicita a internação do paciente, é por uma causa que muitos podem ver, sejam especialistas ou leigos, pois a manifestação clínica mostra com clareza que “o caso é grave”.
Já quando o médico da mente (psiquiatra) identifica a necessidade de internação, muitos não enxergam com nitidez que a medida é imprescindível. Em outras palavras, quando alguém fratura o crânio, as pessoas logo percebem: faz-se a radiografia e é possível comprovar. No entanto, se estivermos diante de caso de loucura, como não existe uma imagem dessa “fratura” na forma como ocorre aos ossos da cabeça, nem todos enxergam a gravidade manifesta.
Em razão disso, leigos e alguns psiquiatras posicionaram-se recentemente contra a internação compulsória para os cracômanos da Cracolândia, sob os mais diversos argumentos: o paciente tem o direito de escolher se quer ou não ser tratado; internação para viciados não funciona; internação psiquiátrica é “castigo” e tantas outras ideias de semelhante qualidade.
As mentes que são contrárias à internação de viciados graves em crack, por coerência, deveriam ser também contrárias à internação por trauma de crânio, enfarte cardíaco e apendicite supurada, dos exemplos dados.
Repetindo, internação psiquiátrica é um cuidado com a saúde que não pode ser administrado em regime ambulatório, tal como sucede às internações médicas de outras especialidades, claro que cada qual com as suas peculiaridades.
Por que é preciso internar o cracômano da Cracolândia? Resposta: por três motivos. Primeiro, porque a dependência do crack na forma como se dá na Cracolândia é doença mental gravíssima, de difícil cura.
Segundo: embora o doente ainda possa ter entendimento da gravidade do mal que padece, do caráter maléfico do fato, da miséria físico-social-familiar que o submete, não consegue determinar-se de acordo com esse entendimento, pois esta escravizado pela impulsão imperiosa para usar a droga agora ou daqui a pouco. Por isso é doente. Se ainda conserva alguma integridade na razão, perdeu totalmente o livre-arbítrio, que se encontra dominado pelo vício. E terceiro, nessas condições de incapacidade, por questão humanitária, precisatomar banho, usar roupas limpas, receber alimentação, repor os sais minerais e as vitaminas, combater infecções, hidratar etc. E, é claro, toxiprivação completa. Alguém conhece alguma outra forma de fazer isso, ou de tratar um atropelado em estado grave, ou um enfartado cardíaco, ou uma apendicite supurada sem internar o paciente?
Lembremos, antes de responder, existem, sim, os Direitos Humanos, mas existem também os Deveres Humanos, que os médicos sabemos que há momentos em que estes se sobrepõem àqueles, caso não estejam alinhados, sobretudo quando o tema é saúde, vida, e a própria dignidade dos nossos semelhantes.
Porém, desde já, internação compulsória não pode ser medida isolada. É apenas o primeiro passo. Precisa muito mais do que isso. Do contrário, soará tão somente como higienismo, uma espécie de limpeza social, o que é inconcebível.