Campo Grande (MS) – A Semana Pra Dança 2015 apresentou na noite deste sábado (23) o espetáculo “Tem Trem?”, do grupo Funk-se, no teatro Aracy Balabanian do Centro Cultural José Octávio Guizzo. Trata-se de uma homenagem à chegada da ferrovia na Capital e mostra um pouco da realidade da vida sobre trilhos, por meio da dança, também à geração que não andou nem conheceu o trem como transporte de passageiros.
A noite começou com a exibição, do lado de fora do teatro, do vídeo “Graffiti Dança”, do brasileiro Rodrigo Eba. A exibição de trabalhos de videodança antes das apresentações faz parte do Festival Cuerpo Digital – Mostra “Miradas Corporales”, com curadoria de Sofía Orihuela, da Bolívia.
Quando o público entrou no teatro, dois bailarinos da companhia estavam em cena, uma bailarina se movimentando como se andasse sobre trilhos, ao som de “Trem do Pantanal”. Logo após iniciou-se o espetáculo, com trilha sonora regional, música caipira e também outras como Charleston, evocando a época em que a ferrovia chegou na Capital, em 1914.
O espetáculo “Tem Trem? “ foi montado com recursos do Fundo Municipal de Investimentos Culturais (Fmic/2013), da Prefeitura de Campo Grande. “Os ensaios começaram em junho do ano passado, e a ideia era que fosse estreado em outubro, nas comemorações dos 100 anos da chegada da ferrovia na cidade, mas não aconteceu. Conseguimos estrear em abril deste ano, no Armazém Cultural”, explica o diretor Edson Clair, no bate-papo após o espetáculo.
A crítica de arte Sandra Meyer, de Santa Catarina, convidada pela Fundação de Cultura para participar dos debates, afirmou estar sendo um prazer conhecer a diversidade de trabalhos que fazem a diferença no contexto regional e nacional. “Vocês são um grupo de 14 pessoas, bastante equilibrado entre homens e mulheres. É um trabalho com muita informação, que mostra novas possibilidades nesse ambiente, nesse universo pantaneiro, do homem da terra, da colonização. Vocês trouxeram isso enquanto dado cultural. São muitas proposições num trabalho só. As cenas acabam logo. Quando estou começando a ter uma experiência com aquilo já mudou a cena. Ficava me perguntando: ‘para onde eles vão, o que vai acontecer agora?’, e era surpreendida por uma nova informação”.
Edson Clair afirma que ele queria mesmo esse efeito. “Tinha muita coisa para falar. O Jair [Damasceno, diretor de movimento e dramaturga] às vezes queria tirar algumas coisas, mas a gente decidiu manter”.
O coreógrafo Henrique Lucas Rodrigues completou dizendo que o espetáculo é uma homenagem à família do diretor, Edson Clair, filho e neto de ferroviários. “Esta é a primeira vez que apresentamos o ‘Tem Trem?’ no teatro. A estreia foi no Armazém Cultural; convidamos os ferroviários para assistir. A ideia era esmo dar uma pincelada [nos assuntos relacionados ao tema], não aprofundar muito”.
O diretor de movimento e dramaturgia, Jair Damasceno, disse que a linguagem tem a ver com o histórico do grupo. “A base do grupo são as danças urbanas. Esse é o terceiro espetáculo em que se investe em espetacularidade, em que saímos das coreografias. [O grupo] veio de danças urbanas e foi progredindo. Já é o segundo espetáculo voltado para questões regionais, o primeiro foi sobre suicídios indígenas. ‘Tem Trem?’ partiu do fato de se ter retirado os trilhos da cidade e acabado a ferrovia. Algumas pessoas do elenco não viram o trem. Não é apenas uma história, são sensações. Queremos levar ao público a emoção. A gente tentou que as coisas fossem ditas, aquilo que a gente sente como emoção dos corpos. Acrobacias não é a proposta do grupo. Queríamos contar a história de como era a música e a dança em 1914. Tiraram os trilhos de madrugada para a população não ver”, lembra.
Sandra avalia a importância da preciso e justeza do movimento. “Pode-se conseguir o máximo do virtuosismo com um movimento simples. Tudo em cena é precioso. Um corpo parado, tudo está envolvido no aspecto técnico. As coisas simples são muito precisas. Um porquê de estar ali daquele jeito. Aí entra a dramaturgia. É uma escolha dramatúrgica, o que precisa estar o mais próximo da cena”.
Uma pessoa na plateia perguntou sobre as referências culturais, regionais, mundiais, como foi feita a pesquisa. Edson explica que estudou o trabalho do arquiteto Angelo Arruda, além de outras fontes, e buscou muitas coisas de sua infância e adolescência. “Fiz um cruzamento das danças daquela época com as de hoje. Queria que o espetáculo fosse acessível. Desenvolvi [esse trabalho] para a cidade se ver retratada, pois trabalhamos com recursos municipais e devemos uma prestação de contas artística”.
Outra expectadora disse que o grupo tem noção das manifestações sociais que ficam caladas. Bailarinos de street incorporando a música regional. Ela pediu aos dançarinos para se manifestarem a respeito. Danilo Mandetta foi o primeiro a responder: “O Funk-se tem essa diversidade rítmica. Em outros momentos já dançamos polca, música popular. Estou há oito anos no grupo. Participei da montagem do espetáculo a partir de determinado momento, e essas músicas entram em contato direto com o que é nosso”.
Ariel Ribeiro falou logo depois: “Entrei no processo de montagem quando este já estava caminhando. Essas músicas me trouxeram para um contexto, para aquela realidade. Comecei a enxergar o espetáculo do começo ao fim. Adoro dançar o diferente. Bailarinos de street não são quadrados. Serve para mostrar a capacidade que a gente tem de não estar rotulado”.
Henrique Lucas Rodrigues disse ser a primeira vez que coreografou o grupo. “Cheguei com outra proposta. Foi difícil entender o corpo, pois eu não queria o que o street tinha de forte, agressivo. Queria algo que tocasse a gente realmente, o que é muito nosso”.
A professora do Curso de Artes Cênicas na UEMS, Dora de Andrade, presente na plateia, também deu seu parecer. “Algumas relações se intensificaram, as transições entre as diversas cenas. Fui tomada pela forma como os corpos ocuparam o espaço. Houve mais liga entre uma cena e outra, um adensamento de relações. A relação com a música criou outro tipo de nuance e intenções; ficou claro para mim. Gostei muito de ver como vocês navegaram nesse colorido para trazer para o espetáculo. Houve esse trânsito muito macio, bem acabado”.
Depois do longo debate, foi encerrada mais uma noite de espetáculo da Semana Pra Dança 2015. O evento termina neste domingo (24), às 20 horas, no teatro Aracy Balabanian, do Centro Cultural José Octávio Guizzo, com o espetáculo “Bota Abaixo”, da Cia. de Dança do Centro Cultural Carioca. A entrada é franca.