Há um mês o presidente Michel Temer sancionou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Entramos no rol de países que possuem um marco regulatório para resguardar os dados dos seus cidadãos. A lei, fruto de um longo debate da sociedade civil, é bem-vinda não só do ponto de vista econômico, ao regular uma atividade em pleno funcionamento no Brasil, mas também do ponto de vista social, dando ao cidadão o poder de evitar que seus dados sejam utilizados para fins com os quais não concorda.
Contudo, com os vetos do Planalto a partes do texto aprovado no Congresso, eliminamos a criação de uma autoridade independente para fiscalizar e uniformizar a aplicação da lei. A justificativa foi a prerrogativa do Executivo na formação de autarquias que gerem novos gastos no Orçamento. Resta acompanhar se o projeto de lei de autoria do Executivo contemplará efetivamente um órgão independente e técnico. Sem isso, corre-se o risco de retrocesso, não só na proteção de dados do cidadão comum, mas também na abertura de dados de interesse público.
A transparência ativa, que possibilita a participação social, e a proteção dos dados pessoais, que resguarda ao cidadão seu direito à livre expressão, são mais do que complementares. Sem a figura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a saída é ver na prática como os órgãos da administração pública interpretam a lei para definir o necessário equilíbrio. Exatamente por serem complementares, são dois aspectos da digitização da sociedade que precisam ser muito bem ponderados para que o Estado não penda nem para um regime autoritário da guarda de dados, nem para a insegurança jurídica.
Hoje, diversos órgãos governamentais guardam informações que, acessíveis, podem contribuir para a compreensão e a solução dos complexos problemas sociais que enfrentamos. Ademais, estamos diante de uma economia inteira de oportunidades, envolvendo plataformas de monitoramento, inteligência, gestão de recursos, integraçcão com Internet das coisas e até automação no campo. Bem regulada, a transparência ativa pode ser fonte de riqueza, resguardando os princípios da privacidade.
Na maioria dos casos, os dados pessoais devem ser preservados por não haver qualquer interesse público em sua divulgação. Mas há casos onde o direito à informação exige a análise de um corpo técnico para delimitar até onde vai o interesse público e o interesse pessoal de quem fica exposto pelos dados. É o caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), base de dados que permite fiscalizar o desmatamento e a regularidade ambiental das propriedades rurais. Por exigência dos setores ligados ao agronegócio, a base foi divulgada apenas parcialmente: não sabemos quem são os donos das propriedades. Sem os CNPJs dos proprietários, não é possível incentivar compradores de produtos agrícolas a evitarem fornecedores em desacordo com a lei, promovendo uma cadeia de consumo mais sustentável. Note-se que o CNPJ é um número público, que por lei deve estar informado em qualquer nota fiscal de qualquer empresa, bem como na embalagem de qualquer produto industrializado. [1]
A divulgação da titularidade de imóveis urbanos também é controversa. Em São Paulo, sob a gestão de Haddad, a prefeitura decidiu disponibilizar os dados cadastrais de mais de 3,3 milhões de imóveis. Antes eram acessíveis apenas àqueles que fossem em cartório e pagassem por eles. Ao ampliar o acesso, novas pesquisas e reportagens puderam descortinar o cenário de concentração fundiária na cidade, com 820 mil imóveis nas mãos do 1% de proprietários mais ricos. Além dos fins de fiscalização, tais dados podem gerar informações que possibilitem o desenvolvimento de novos negócios, especialmente negócios digitais, o que seria interessante em tempos de crise.
A disputa para delimitar o público e o privado também recai sobre o Cadastro de Pessoa Física (CPF). Ele é considerado por alguns órgãos, como a Receita Federal, dado privado não passível de abertura. Já outros liberam os CPFs de indivíduos constantes em seus repositórios, caso dos candidatos a cargos eletivos ou doadores de campanhas nas bases do Tribunal Superior Eleitoral.
Há exceções que permitem a criação de serviços de dados públicos que atendem ao mercado privado. É o caso do APIsGOV, serviço do SERPRO, que oferece consultas pagas e serviços de business intelligence para empresas, criando não só um monopólio de informações coletadas com dinheiro público, mas também proibindo o acesso ao modelo de precificação estabelecido. Um exemplo que evidencia a necessidade de um corpo técnico habilitado para definir as regras da exploração comercial de dados no Brasil. Poderíamos listar outros tantos que demonstram não haver uma definição uniforme do que caberia ser divulgado ou não sob o manto da privacidade ou do acesso a informações de interesse público.
A Lei de Acesso garante maior prestação de contas do Estado e dos entes privados que com ele se relacionam para que a gente possa fiscalizar e participar da implementação das ações e políticas que afetam diretamente nossas vidas. Agora a LGPD garante o controle também sobre nossas informações pessoais, como são armazenadas e tratadas por entes públicos e privados e com quais finalidades são divulgadas a terceiros. Ela deve ser aplicada não só a plataformas comerciais, mas também à administração pública, a se considerar as diferenças, por exemplo, entre a divulgação do NIS e nome completo de cidadãos que recebem o bolsa-família em valores irrisórios, e donos de empresas que realizam negócios com a administração pública. O que chamamos de princípio da assimetria precisa ser levado em conta, e apenas um conselho técnico isento pode uniformizar o cenário da interoperabilidade de dados pessoais no Brasil.
Está claro que uma lei que resguarda os dados pessoais dos brasileiros não pode ser empecilho para a transparência pública, nem para a criação de novos negócios. Muito pelo contrário, a Lei de Dados vem para dar mais poderes aos cidadãos e mais transparência às ações da administração, com um papel importante inclusive na prevenção do vigilantismo. Um governo inovador, condição imprescindível para um Estado democrático, passa por pensar os equilíbrios necessários aos dois lados.