Produto sociopolítico, a historiografia é, sempre, uma leitura ideológica do fato, narrado, comentado ou tentativamente interpretado. E, sabidamente, toda leitura ideológica se caracteriza pelo descomprometimento com a realidade fática, pois seu elemento essencial (a lente mediante a qual o narrador ou intérprete lê o mundo) é uma tábua de valores. Não há, portanto, nem escrita, nem crônica, nem leitura pura: a narrativa histórica é uma versão da realidade matizada pela visão de mundo do observador, visão que igualmente não é uma dádiva dos céus como o orvalho: reflete o papel do indivíduo na sociedade e desvela sua posição de classe. Daí resulta a inutilização da história narrada? Não, mas a advertência de que, ao lado da versão da classe dominante, a quem cabe a saga dos vencedores, há a versão dos subsumidos pelo capital, escrita pelos seus intelectuais orgânicos, ou revista pelos intelectuais que se apartaram dos interesses de sua classe de origem, como bem ilustra a versão euclidiana do massacre dos camponeses de Canudos, contraposta com a narrativa do exército, reproduzida pelos historiadores do sistema.
O historiador é seu meio e seu tempo; sua obra reproduz sua sua maneira de ser no mundo.
O processo social, ao definir o papel do cientista e do filósofo, como o do historiador, define o destino da ciência, tanto quanto da filosofia, da política e da história, que é, tão só, uma versão da realidade, isto é, uma produção ideológica. Trata-se, portanto, de um processo de evasão da realidade, fundamental para a reprodução do modo de produção vigente, a matriz do poder, que, por seu turno, depende da ditadura da ordem, que aprisiona o movimento. Ou, lembrando o cinismo de Tancredi (O Leopardo, de Lampedusa), toda mudança é vetada, a não ser aquelas que garantem que nada mudará. Assim, no contrapelo da revolução, o statu quo se transforma em futuro. O mando é intocável.
Essas reflexões me são sugeridas pela leitura de Brasil, crítica impura – viajando pelo tempo presente (LetraCapital. Rio, 2023), do cientista político Lincoln de Abreu Penna, para quem “O estudo da historiografia é o estudo das condições [materiais, segundo Marx] de produção das ideias”. Lincoln, na boa trilha traçada por Astrojildo Pereira, põe em relevo o papel dos interesses de classe na conformação do sentido histórico, e afirma: “O passado é usado para legitimar o presente”, advertência que nos chega em momento crucial do esforço coletivo de pensadores de diversos matizes visando a interpretar (para alterá-la) a história brasileira presente: 500 anos de impasse, ou seja, de vitória da conciliação de classe sobre a ruptura social.
Por sem dúvida que a leitura do passado ilumina o presente, mas não o determina como resultado de uma relação mecânica, simplesmente porque o presente é uma construção do presente, de sua classe dominante presente, que optou, no caso brasileiro, pelo projeto da casa-grande, ou seja, optou pela projeção do passado. A continuidade se dá mediante a conciliação, projeto ideológico mediante o qual a classe dominante (algo como 1% da população) controla 50% da riqueza nacional enquanto a realidade permanece congelada: o atraso, a miséria, a fome, o desemprego, a extrema concentração de renda, fazendo de nosso país uma das mais perversas experiências sociais na periferia do capitalismo.
Uma das características das interpretações dominantes da história presente é a de que somos, como a imagem no espelho, a simples continuação do que que sempre fomos), e, produto de um passado presente, não poderíamos ser senão o que somos, e com isso se naturaliza quase tudo, a começar pela ascensão do protofascismo, ora explicado como produto inevitável de nossa formação histórica fundada escravismo, no genocídio das populações originárias, no latifúndio e na violência necessária para sustentar tudo isso; ora explicado como mero reflexo de uma tendência mundial contra a qual não podemos terçar forças. Uma sociedade conservadora – e por que somos, seríamos, uma sociedade conservadora? – só poderia produzir uma política conservadora. Registre-se que nenhuma dessas interpretações foi arguida nos momentos em que o país respirava ares de avanços democráticos…
O desafio, e Lincoln Penna trabalha com essa compreensão, não está em colocar novas molduras no velho retrato de nossa história social, mas em resgatá-la para poder modificá-la. Remontamos a Marx, levado a abjurar a filosofia, para poder realizá-la na política. Na célebre 11ª tese sobre Feuebarch, nos dirá que os filósofos já haviam interpretado bastante o mundo, era chegada a hora de transformá-lo. O filósofo, o escritor, o historiador, o intelectual de um modo geral, antes de autor de livros ou de teorias, é alguém que está concretamente em um mundo concreto. Literatura e ação, como a ciência e a história, pertencem a único tempo.
Lincoln nos fala de um passado ainda presente, mas não o destaca para justificar a persistência do atraso social, e sim para denunciá-lo como ponto de partida para sua revogação. Não é, decerto, um saudosista da casa-grande. O historiador – e assim ele se insere como sujeito político, comprometido com a revolução – não é um colecionador de fatos ou episódios, mas agente político, um formulador; mais do que intérprete, agente social, seja na mudança seja igualmente na preservação da ordem imobilizadora, papel do intelectual tradicional, porque o pensamento não se desliga da ação, que lhe empresta valor: o pensador – seja o filósofo, seja o historiador, seja o formulador político – é, necessariamente, um homem de seu tempo, cujas contradições reflete e reproduz. A história, ensina a tradição marxista, não é a sistematização lógica de fatos do passado, mas a interpretação, comprometida, do fenômeno social, que explica, emprestando-lhe valor e significado. E essa interpretação não se esgota em si, pois, também fruto da ação do homem em seu meio, é a chave de sua intervenção no processo social.
O historiador, portanto, é (ou deve ser) um intelectual comprometido. Esta a ideia que perpassa, com extremada congruência, todas as páginas de Brasil, crítica impura, impura exatamente porque expressa suas convicções de ensaísta militante, como muito apropriadamente se autoqualifica Lincoln Penna.
O intelectual clássico é definido, desde o caso Dreyfus (1894-1906) como aquele “homem de letras” que se põe a serviço de uma causa, política ou social. O paradigma seria Voltaire. Nessa galeria se encontram Victor Hugo, Zola e, dominando o século passado, Bertrand Russell e sobretudo Sartre, o intelectual “engajado” por excelência; prementemente comprometido, não professa distinção entre teoria e prática, discurso e ação. Gramsci grafou a expressão “intelectual orgânico” para, em oposição ao conceito de intelectual tradicional, aquele sempre a serviço da classe dominante, definir o intelectual que se conserva fiel aos interesses de sua classe de origem e deles se faz porta-voz. Luiz Inácio Lula da Silva é exemplo paradigmático de intelectual orgânico da classe trabalhadora, assim como Luiza Erundina, que nunca mudou de lado. Há, porém, e felizmente não são poucos (os exemplos matriciais remontam a Engels e Marx), aqueles intelectuais que, apartando-se dos interesses de sua origem de classe, adotam como causa de vida e produção intelectual a defesa dos interesses das massas subjugadas. No mundo contemporâneo é a saga dos intelectuais socialistas e comunistas de modo geral, mas, de especial, dos de filiação marxista, rol no qual se insere Lincoln Penna. Sua característica é a militância, caminhando a mesma trilha de Astrojildo Pereira.
Ser histórico, contemporâneo, o intelectual de esquerda, necessariamente militante, cumpre a missão de incomodar, inquietar, desassossegar. Uma consciência atormentada e atormentadora. Seu compromisso em face da realidade é alterar o mando de classe.
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O cerco do atraso – O BRICS, abalado pela guerra, e teoricamente fortalecido com a recuperação política brasileira, se debruça, hoje, sobre dois temas principais: 1) a adesão de novos membros (há 2 dezenas de interessados); e 2) a adoção de uma moeda comum para transações intrabloco. Em relação ao primeiro tema, comenta-se que a inclinação da maioria é remar devagar, possivelmente criando uma categoria de membros observadores (como tem a OCDE). No tocante ao segundo, se a moeda comum se estabelecer e o bloco incluir a Arábia Saudita, haverá uma alteração no equilíbrio do poder mundial, com os petrodólares deixando, em larga medida, de ser dólares estadunidenses. É a tarefa que estará posta sobre a mesa de Dilma Rousseff. Sabe-se que esse objetivo já é pacífico no Itamaraty, no Planalto, e mesmo no Ministério da Fazenda. De onde se espera uma forte resistência? De setores das forças armadas, do grande capital e, por consequência, do Banco Central, que se consolida como um Estado (autônomo) dentro do Estado brasileiro.
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*Com a colaboração de Pedro Amaral