“O espírito da esquerda existe e precisa de encarnação”.
(Edgar Morin,102 anos).
Em apenas uma semana a humanidade democrática saltou do anunciado mergulho no poço sem fundo do desencanto (ao qual parecia condenada) para a recuperação da esperança, que hoje corre o mundo como lufada benfazeja. As boas novas que chegam da França nos afagam e animam em momento de muita carência. Comemoremos, pois, a primavera fora do calendário. É o que o filósofo Edgar Morin, em sua lucidez, define como “encarnação”, que não foi, esta que estamos a festejar, obra do acaso, jamais o é, e menos ainda oferenda dos bons fados, posto que é fruto de muito engenho e arte. Trata-se de ourivesaria concertando na mesma peça a denúncia política firme e a hábil coragem do pragmatismo a serviço de um objetivo claro. O avanço em vez de recuo. A esquerda que se tinha em estertores – consumida pelo avanço incoercível da extrema-direita protofascista, que corre o mundo e nos ameaça –, ressurge na liderança da Assembleia Nacional, superando os fascistas de Le Pen e os direitistas de Macron, o presidente que conheceu as cordas nos pleitos de junho e julho, mas que ainda hoje tergiversa no reconhecimento do decreto da soberania popular. Sua derrota não foi acachapante, como anunciavam os números do primeiro turno, e como desejava Marine Le Pen, desde logo candidata à sua sucessão. Governará, sabe-se lá como, em coabitação que ainda não se conhece, mais três anos, mas é desde já o que a literatura política nos EUA chama de “pato manco”, de que é exemplo Joe Biden, nos seus longos poucos dias restantes de Casa Branca.
A encarnação da esquerda se dá na política e toma o corpo da militância ao assumir o dever esquecido da iniciativa da ação e do discurso afirmativo, que pedem saber e coragem. A um tempo, a esquerda ressuscita e se encarna no corpo da militância, na eloquência de programa de governo sem concessões ao neoliberalismo governante no mundo e aqui maquinando dia a dia, por todo o tempo e por todos os meios a desconstituição ideológica do nosso governo, assim condenando às calendas gregas – mais uma vez! – a esperança de encarnação do espírito de uma esquerda tout court: o combate às desigualdades sociais, pois é, tão só, e ao mesmo tempo tão moralmente grandioso, o pouco que nos permitem as vagas da história de hoje.
Diante da ameaça de um novo Vichy, e o anúncio das trevas que eram as promessas de seu governo, os franceses optaram pelo discurso de Mélenchon. Enquanto Jordan Bardella, o líder na chapa de Le Pen e seu declarado candidato à chefia do próximo governo, batia nas teclas reacionárias de todos os tempos, como combate à imigração, ênfase nas políticas de segurança pública e aumento dos recursos destinados às forças de segurança/repressão, protecionismo industrial e ao multiculturalismo, a frente de esquerda, sob a liderança de Mélenchon, defendia a justiça social e econômica, a redução das desigualdades e o aumento do salário mínimo, uma reforma tributária progressiva e o fortalecimento do Estado de bem-estar social destroçado pelo neoliberalismo, uma política externa independente em face dos EUA, a proteção e ampliação dos direitos trabalhistas, com a redução da jornada de trabalho. E, por fim, mas como verdadeiro fecho, o fim da Quinta República, com uma nova constituição elaborada com o objetivo de reduzir os poderes atuais do executivo e assegurar o aumento da participação popular na gestão pública.
Eis a lição que os franceses liderados pela França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon nos ofereceram no último domingo, 7 de julho, mês tão significativo para sua história: o de saber proteger-se do radicalismo infantil, porque divorciado da realidade, sem todavia renunciar aos seus princípios, mas, ao contrário, proclamando-os, e assim renovando-os. Na reversão das expectativas mais desanimadoras ressalte-se a retomada, pela esquerda francesa, da consciência prática da importância da militância e de sua mobilização, as ruas como seu auditório de preferência. Não pode passar despercebido o fato de que as eleições mobilizaram a sociedade francesa: as estatísticas registram o comparecimento de 67% dos eleitores, o mais alto dos últimos quarenta anos. Mas louve-se em primeiro plano o mérito de haver triunfado a política de frente, ao reunir na Nova União Popular Ecologista e Social (NUPES), além do França Insubmissa, o Partido Socialista, o Partido Comunista e os Verdes, e, sem concessões de algibeira, haver conseguido levar esse discurso às grandes massas inorgânicas, as que decidem as eleições, aquelas com as quais por aqui não trabalhamos, aquelas que não mobilizamos.
Porque lhe foi possível, por seus méritos – a noção clara da necessidade de manobras táticas para preservar a integridade estratégica –, ingressar na disputa abrigada em um programa de governo realmente de esquerda, sem concessões ao neoliberalismo que, repercutindo a força do monopólio financeiro, percorre o mundo nesta antevéspera da falência do imperialismo, mas em condições de discutir e negociar com as demais forças do sistema político.
Entre nós, nada obstante a vitória majoritária de 2022, a discussão se trava em torno do déficit público; por força das circunstâncias, nos limitamos, hoje, a rearranjos monetaristas, ainda repetindo bordões do Banco Mundial e do FMI. Para “acalmar os ânimos”, nosso ministro da Fazenda anuncia à Faria Lima a renúncia aos investimentos que nos ensejariam a retomada do desenvolvimento econômico, sem o qual não se pode pensar seriamente em proteção social.
Mesmo considerando a clareza dos resultados das eleições francesas, ainda há muito de dúvida no cenário que o processo histórico nos reserva. Estimemos que o desejado seja a realidade próxima e que seja possível a coabitação de Macron com um quadro da esquerda vitoriosa, e que o programa da frente de esquerda seja negociado, e em torno dessa negociação se definam o novo primeiro-ministro e o novo governo.
Festejemos o que podemos comemorar, mas sempre com os pés na terra. É preciso considerar, por exemplo, que, nada obstante o feito da NUPES, a extrema-direita é o grupamento político partidário que mais cresce na França, e neste segundo turno, se perdeu em número de cadeiras conquistadas, ganhou em número de votos: 8,7 milhões (32% dos votos) contra 7 milhões (25,6%) dados à esquerda. E sabe-se que os eleitores de Macron se perfilam à direita. O Reunião Nacional de Marine Le Pen, de outra parte, é o único partido em ascensão constante no crescimento de sua bancada na Assembleia Nacional, nos últimos 25 anos.
Não está claro a que ponto deseja chegar Macron procrastinando a execução do que lhe foi ditado pelas urnas. Não parece crível que pretenda ignorar. Não se sabe em quais condições governará sob minoria na Assembleia, o que parece impossível nesse regime que os franceses herdaram de De Gaulle com a Quarta República, que dá mostras de encaminhar-se para uma crise político-institucional que poderá levar ao fim esse regime híbrido, que se define ora como semiparlamentarismo e ora como semipresidencialismo, sem, ser, realmente, nem uma coisa nem outra.
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O “novo” Ensino Médio – O pior não é o Congresso Nacional que aí está (o pior da história republicana) haver aprovado a “reforma” educacional de Temer-Bolsonaro, sob encomenda das fundações empresariais, que aprofunda a precarização da educação brasileira e agrava as desigualdades já tão penosas e obscenas. Uma “reforma” que até mesmo – pasmem! – promove o trabalho infantil, contra tudo o que possamos considerar avanço. O pior nem é o golpe de mão (mais um) do coronel Arthur Lira, para acelerar a aprovação da matéria, cerceando o debate. O pior, mesmo, é a anuência do Governo Lula, manifesta na ambiguidade (por fim desfeita) do Ministro da Educação e na tibieza insuperável do líder do Governo na Câmara.
Um fato triste e embaraçoso, que nos cobra uma profunda reflexão.
Ainda a “reforma” – Proclamado o resultado pelo jagunço das Alagoas, o ministro da educação, o líder do governo e as fundações empresariais comemoraram, enquanto estudantes e professores alternavam revolta e desalento. Ou seja, nosso governo mostrou que sempre teve lado no tema: o ziguezague era jogo de cena, para ganhar tempo. Um vexame para quem se vangloria de estar sempre “do lado certo da história” – e provavelmente um erro tático, quando não se pode dispensar o apoio (e o voto) de estudantes, profissionais da educação e suas famílias.
Paulo Freire deve estar se revirando no túmulo. Mas a “reforma” foi festejada pelo O Globo. Tudo a ver.
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*Com a colaboração de Pedro Amaral