A quididade da navegação corumbaense

Enchente atingiu em 1929 a estação da NOB em Porto Esperança (MS) – Foto: Museu Municipal de Avaí (SP)

É indispensável asseverar que o Rio Paraguai, (trecho) Corumbá a Porto Murtinho, no extremo sudoeste de Mato Grosso do Sul, foi a quididade dos grandes conflitos envolvendo portugueses, espanhóis e os povos originários, até o final da Guerra da Triplice Aliança (1864-1870). Ao percorrer seus 526 quilômetros, pelo caminho se encontram testemunhos destas disputas, como as fortificações, e uma comunidade que ainda mantém crenças e lendas, personificando heróis e celebrando o milagre da sobrevivência. Assim, Porto Esperança por muitos anos foi o ponto final do tronco da NOB. Do Carandazal a Porto Esperança eram cerca de 38 km e quando chegava-se a estação, tomava-se o vapor para subir o Rio Paraguai, para chegar-se a Corumbá e posteriormente Cuiabá. No caso da Cidade Branca eram cerca de 79 quilômetros num tempo de percurso de 14 horas, hoje realizado em cerca de uma hora pela BR-262.

Nos idos de 1947 o barco que fazia essa ligação era o famoso Fernandes Vieira, uma canhoneira adaptada para o transporte de passageiros. Em 1952 quando foi aberta a linha Carandazal/Corumbá, para chegara Porto esperança passou a ter de se utilizar de outro trem, numa linha de 4 quilômetros que saia de Agente Inocêncio. Naquela época os navios chegavam até Porto Barranqueira na Argentina. È o que retrata a letra da música “Tempos da esperança” do indefectível Moacir Saturnino de Lacerda: “ O rio levando minhas lembranças para o mar / Algumas gotas sei que em chuvas voltarão / Para regar novos sonhos de criança / Fazer brotar novas canções no coração. // O Trem que chega traz notícia e alegria / Ao seu apito, o Porto afasta a solidão”.

Grupo Acaba – Foto: Divulgação

Mas lembrar de Moacir Lacerda não faz sentido se não recordarmos seu irmão Chico Lacerda que observando a decadência e sucateamento da NOB, consubstanciando o abandono dos ribeirinhos daquela região pantaneira, o Poeta de Albuquerque, Chico Lacerda salpicou estes melancólicos versos: “A água veio e levou / Porto Esperança ficou / Sem esperança de amor. / A água veio e levou / As penas do papagaio / As histórias de Armandia / Levou na última cheia”.

Existia uma simbiose entre Porto Esperança e a NOB no que tange a uma convivência eficaz e harmônica com as cheias cíclicas do Pantanal, fato eternizado na música Ciranda Pantaneira que “a folha que a água leva, leva o bem e leva o mal”. Mormente, durante os meses de cheias, quando as singelas residências e palafitas de Porto Esperança ficavam parcialmente submersas, os moradores ribeirinhos se mudavam para os vagões cedidos pela NOB, e assim ficavam abrigados provisoriamente até que as águas baixassem ao leito natural do rio Paraguai. E se restabelecesse a ordem natural das coisas. O distrito da Manga, por sua vez foi importante porto de transbordo de gado. Guarda uma das relíquias dos tempos de apogeu de Corumbá e a chegada do telégrafo naqueles confins de 1900:

Escritora Mara Calvis – Foto: Divulgação

Estes detalhes, vieram a mente, pois recentemente encontrei o compositor Moacir Lacerda no lançamento do “Best Seller” Estrela do Ócio, livro de 142 páginas impregnado do lirismo encantador de Carmem Eugênio. Ao abraçá-lo rememorei uma frase que ele disse quando citava uma das viagens no Fernandão: “Lembro o aroma que sentiam da comida servida no andar superior do Fernando Vieira, enquanto que eles e demais passageiros do andar inferior eram obrigados a se contentar com as “matulas”, alimentos trazidos de casa. Meu pai também me contava:” Filho, quando o navio lentamente passava no meio do rio, todo elegante e garboso, lotado de gente e cargas, era preciso ouvir com atenção; se ele desse apenas um apito mais longo, era sinal de que não iria parar, mas quando ele dava três apitos em sequência, era sinal de que iria parar e era uma festa ver os tripulantes tirando os camalotes das pás e amigos chegando para uma visita ( nesta rota de aventuras eu e meu pai minha mãe e irmão…canoas com rapaduras na cheia do nosso chão), Por derradeiro, Moacir Lacerda é uma enciclopédia ambulante do Pantanal e agora aliado a Mara Calvis, uma incansável educadora ambiental, autora de diversos livros, que lançam no dia 26 do corrente, em Corumbá o “Vapor Fernandão” Navio Fernandes Vieira (Histórias e Memórias). “Fernando Vieira”, também é título de uma canção do GRUPO ACABA, integrante do álbum A Última Cheia, de 1984.  Certamente “Vapor Fernandão”; é para ser livro de cabeceira. Imperdível.

Livro ‘O Vapor Fernandão’ – Foto: Divulgação

*Articulista

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