A produção poética de Rubenio Marcelo é feita de buscas. Em voos, veleiros, vias e caminhos, sua produção é um exercício da alma. Esta, enquanto imaginação e substância, é o sopro da capacidade de pensar o princípio transcendente do Ser, cuja atividade criadora dá-lhe acesso ao paradoxal mundo dos viventes. Assim tem sido, por exemplo, desde Voo de polens (2012), Veleiros da essência (2014), Vias do infinito ser (2017) e Caminhos: 100 poemas escolhidos de RM (2024). É o poeta no movimento dos sentidos alados, que singram mares e traçam caminhos palmilhados na e pela existência. O eu poético é uma entidade em travessias. Do seu originário mar para o sertão sul-mato-grossense, Rubenio interioriza-se e junta-se ao coletivo para contribuir no processo de “mover a periferia”, como fala Alfredo Bosi. Cria uma cartografia interna surgida de fontes externas, construídas em percursos transcendentes. Nesta recente produção, atravessa o “mar oceano” dos antigos navegantes e aporta em terras lusitanas para delas experimentar um novo cotidiano, ampliar olhares e alcançar a origem do movimento de conquista que nada mais é do que a síntese dos próprios caminhos. De lá estabelece o diálogo crítico com a ensaísta Ana Maria Bernardelli. Da parceria, o livro se liquefaz em respingos de arte-análise difícil de imaginar os resultados, senão aqueles que dispersam/complementam o ato da (re)criação.
Rubenio Marcelo tem lançado palavras ao sabor dos ventos, deixando-se levar por marés distantes. Ana Maria capta os efeitos dos ventos sobre o mar e transfere as fontes da energia poética em palavras-análises. Ambos ensaiam os pulsos da fonte emissora e propagam vibrações variadas no (e pelo) jogo linguístico em busca da essência poética, que é também o princípio vital e a capacidade de pensar com a alma. Rubenio sente as emoções e doma os sentidos do ínfimo ao infinito, numa explosão de composições. Encanta-se com a terra e a gente lusa e enlaça a substância anímica às águas dos mares portugueses. Ana Maria reverbera tais energias pelo espaço, metaforizando, com outras leituras, o encantamento de uma pedra lançada nas águas de um rio, gerando círculos concêntricos.
Na órbita deste livro “ALMAR: poemas lusitanos de Rubenio Marcelo na ótica ensaística de Ana Maria Bernardelli“, o trabalho coletivo dá vida a novas conquistas pela inventividade de que só a palavra é capaz. Os poemas, construídos pelo exercício da experiência de Rubenio em outras terras, trazem o apelo que brota da alma. Ao mar/alma e mar conformam sentimentos diversos só possíveis pelo jogo criativo. O leitor ouve diferentes vozes e apreende com elas a escuta do sutil rumor barthesiano da linguagem e seu espaço de fruição. Como quilha da embarcação, os poemas rompem, ao mesmo tempo, a dialética do desejo e a estabilização da trajetória.
O que poderia almejar o poeta com a junção de terras e de olhares leitores? Para além de uma estratégia de nunca estar só, presente em vários de seus livros, a força do diálogo afina os itinerários e “a barca abarca náufragos”. Ou seja, o jogo poético tece múltiplas temporalidades inscritas no universo de produção, cujas necessárias parcerias multiplicam o sentido leitor e ampliam o olhar do viajante, numa espécie de re-descobrimento de imagens, que levam o poeta a tecer os elos entre os continentes.
Os 33 poemas de Rubenio Marcelo, acompanhados dos respectivos ensaios (de Ana Bernardelli) reunidos no livro, são vistos como cartas de navegação. São símbolos de uma desafiadora vontade de formar navegadores/leitores, acreditando na força anímica da poiétiké, síntese de uma ideografia de figuras abreviadas, cuidadosamente sedimentadas pela matéria-prima do poema. Na ânsia de fugir do tempo, o poeta não quer respostas (e quem as tem?!), mas desafios. O seu cotidiano está para além da superficialidade, ou mero prazer do deslocamento proporcionado pela viagem. Reside no desvelamento de recriação, de descortínio de pluralidades. Assim, o poeta ora se perde, ora se encontra, reafirma ou modifica a vivência oriunda do próprio percurso. Há, portanto, uma espécie de transfiguração, de modo que aquele que parte nunca é o mesmo que regressa. Nesse sentido, sua realidade é epifânica, manifestação mesma do espiritual (ou divino?!). É a vibrante busca do novo na e pela travessia, momento em que se dão as revelações transformadoras.
O livro “ALMAR: poemas lusitanos de Rubenio Marcelo na ótica ensaística de Ana Maria Bernardelli” sinaliza profusões telúricas mescladas com certa juventude eterna e irreprimível saída de cada verso e cada olhar ensaístico. Existe um compasso melódico próprio da música, mas também do ritmo das correntezas. Não há como desafiar mares sem desvendar almas. E é desta forma que eu-leitora me vejo prisioneira de lembranças vivenciadas nessas mesmas terras. Extasio-me e revivo espaço/tempo ao lado daquilo que o poeta-viajor e a analista desvendam.
Que o nosso diálogo permaneça como mapa de muitas navegações envoltas em inusitadas travessias como estas propostas por Rubenio Marcelo e Ana Maria Bernardelli.
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(*) Olga Maria Castrillon-Mendes é professora e pesquisadora da Literatura Brasileira. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/UNEMAT. Do Instituto Histórico e Geográfico de Cáceres e da Academia Mato-Grossense de Letras.