Campo-Grandense de coração (e de nascença), mas vivendo atualmente no Rio de Janeiro, Ique Woitschach concedeu entrevista exclusiva à equipe da Comunicação da Fundação de Cultura na última sexta-feira. Ique é jornalista, chargista, caricaturista, autor roteirista, pintor e escultor, produtor e diretor e tem dois prêmios Esso de Jornalismo por charges no Jornal do Brasil e dois livros publicados. Ele falou sobre o processo criativo da escultura em homenagem ao poeta e sobre a importância deste trabalho para a memória cultural sul-mato-grossense.
FCMS – Qual a importância de um trabalho como esse de arte pública, que será para a população do Estado de Mato Grosso do Sul? Que aspectos conceituais estão envolvidos nessa ação?
Ique – A importância é total, nosso país não tem a cultura da arte na rua como se vê na Europa e até nos Estados Unidos. A nossa cultura, pela condição política que sempre foi mais preocupa com outros fatores, até com a população cobrando escolas, saúde, que sempre foi necessitada, as pessoas esquecem da cultura, que é tão importante quanto escola e quanto a saúde. A cultura é quem vai transformar esse povo para que ele possa realmente cobrar desses políticos as outras coisas que vão acontecer.
Você tem figuras importantes como Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Pixinguinha, são patrimônios da nossa cultura e não são relembrados, não são festejados. Alguns dizem que isso será um ponto turístico como se fosse algo negativo, mas não é esse o objetivo. Objetivo é eternizar a figura de Manoel que tem uma importância internacional. E mostrar para a população que esse acesso à cultura, esse acesso à arte, não é só para pessoas de poder aquisitivo.
Isso é de fundamental importância de uma nova cultura em nosso país, que respeite a arte, que respeite o artista, o poeta, o músico…e só tem um jeito: levar isso para a rua, eternizado em bronze, que vai durar dois mil anos a escultura. E ele vai ficar ali sendo homenageado e ao mesmo tempo interagindo com a população. Assim você quebra esse paradigma de que a arte é algo inalcançável, de que é preciso ter muito conhecimento para ter acesso a ela. Não! Você vai ter o conhecimento na medida em que você tem acesso a ela.
Por isso é que nesses anos todos busco em meu trabalho essa necessidade de quebrar esses paradigmas. Meu estúdio é aberto, é dentro de um shopping, em uma vitrine toda aberta. Você chega ao local e tem acesso a minha arte. A arte é transformadora e inspiradora, te leva a lugares onde você não está acostumado a ir.
FCMS – Como você se sente sendo conterrâneo do poeta e realizando este trabalho?
Ique – Ser conterrâneo do poeta é mais do que uma coincidência. É para mim um prêmio. Esse projeto já tem seis anos. O poeta ainda estava vivo quando tentei realizar esse projeto aqui em Campo Grande. Sempre disse que a melhor homenagem é aquela que se faz em vida. Ele já tinha seus 90 e muitos anos. Apresentei o projeto, mas não andou. Até que ele morreu e só agora o atual governador e a Fundação de Cultura se sensibilizaram e promoveram isso. Para mim é um prêmio poder fazer a escultura desse conterrâneo ilustre. Justamente onde meu trabalho está em seu melhor momento, estou afiadíssimo tecnicamente, todos esses anos fazendo esculturas me levou a um nível técnico que me deixa feliz.
Isso gera um novo desafio para mim, pois fazer o poeta sentado no sofá de sua casa no meio da rua é humanizar e trazer o ambiente que era só dele para esse povo que já gosta da poesia dele. Tenho certeza que o local será muito visitado não só por ser um ponto turístico, mas porque é o Manoel todo o dia, aguardando cada um de seus fãs, amantes da poesia, para que sente ao lado dele, converse com ele, sinta os passarinhos que ele vai chamar e sinta a árvore que ele virou.
FCMS – No momento em que você está trabalhando na escultura, quais emoções chegam até você, quais os pensamentos, o que passa pela sua cabeça?
Ique – Eu sou um artista que gosta de sentir muito o personagem. Meu toque de entrada são imagens, fotografias, vídeos. Mas eu já gostava das poesias de Manoel, então gosto de pensar o que estava acontecendo com ele no momento em que a poesia estava sendo feita. Aí começo a me aproximar dele. Quando estou fazendo meu trabalho, sinto que só vai ficar realmente pronto quando conseguir aprisionar a alma de meu personagem naquela figura fria de metal.
É pura sensibilidade. É natural, não é algo que se pensa para fazer. Aconteceu algo engraçado quando comecei a fazer a estátua do Pixinguinha e comecei a sentir dificuldades, não na figura dele, mas na fisionomia, eu não achava a figura dele, e ele não é uma figura difícil de se fazer, estudei a anatomia facial durante minha vida inteira e mesmo assim vi dificuldades. Um dia tive um sonho e Pixinguinha apareceu no meu sonho. Eu estava fazendo a escultura e ele entra. Brinquei com ele dizendo que não o encontrava. Ele me respondeu: Do jeito que você está trabalhando não vai me encontrar nunca. Você está calçado, se não tirar o tênis, não botar o pé no chão não vai me encontrar. Então passei a ir descalço e desde então encontrei a essência dele. Sou muito cético, mas não custa nada respeitar o conselho no sonho. Foi meu contato com ele, agora não sei como será com Manoel. Será um desafio. Já senti dificuldades fazendo a miniatura. Ele tem uma expressão muito forte. A estátua não pode passar par ao nível da caricatura. E ela não pode ficar um retrato que não coloque toda energia que ele tem, esse sorriso dele é uma coisa muito intensa e eu preciso colocar isso lá. Com certeza algo vai acontecer.
FCMS – Você certamente conhece a obra de Manoel de Barros, não é? Como a poética dele será introduzida na escultura? As pessoas vão conseguir ver a poesia na escultura?
Ique – Sim, conheço bem. E esse é um outro desafio do qual mais gosto. É esse o meu caminho. A escultura será minha forma de interpretar sua poesia, uma interpretação artística em terceira dimensão do que eu sinto da poesia do Manoel. Vai além do sofá de sua casa e sua perna cruzada. Eu sinto muito essa poesia, ele fala comigo, pois vivi o que ele fala, eu sou daqui, sou da terra, vivi com o pé no chão, conheço as formigas que ele fala. Eu só não sabia traduzir o que as formigas falavam comigo, mas ele traduziu para mim. Então isso eu quero colocar nessa escultura.
FCMS – Para terminar, gostaria que você falasse um pouco do início da sua carreira aqui em Campo Grande, o que você já fez aqui até chegar na produção de escultura. Como começou tudo isso?
Ique – É uma história longa, ficaremos aqui por horas, mas vou tentar resumir. Fui nascido e criado aqui, minha família era muito pobre. Brinco com meus amigos que quando a cegonha me trouxe do Pólo Norte, ela acordou atrasada e levou uma encomenda que era do Rio de Janeiro, mas quando passou por Mato Grosso do Sul caiu a encomenda e só quando ela chegou no Rio foi perceber. Sou um campo-grandense habituado ao RJ, mas essa terra aqui é minha essência, quando preciso de energia venho até aqui botar os pés no chão. Sempre desenhei desde pequeno, ganhei meu primeiro prêmio de desenho quando tinha cinco anos, mas meu sonho era fazer escultura, pois achava o desenho tão fácil que a escultura era o difícil.
Lembro que era garoto, ali na Afonso Pena em frente à praça do Rádio Clube, havia uma árvore que cortaram e um escultor fez uma mão na árvore. Essa escultura levou meses para ser feita, e eu ia todo dia observar o artista executando sua obra. Não sei onde foi parar aquilo, mas com certeza me inspirou. Então me dediquei ao desenho, fui contratado com 15 anos para ser cartunista aqui no Diário da Serra, fui pra faculdade de educação artística na Universidade Federal (UFMS). A família queria que eu fosse engenheiro e eu queria ser artista. Foi uma briga, mas consegui me matricular no curso e com dois anos de Universidade, eu fiz umas exposições e o Ziraldo veio dar uma palestra e passou 15 minutos da palestra falando do que ele viu lá fora, que era a minha obra. Ele disse que eu precisava ir embora daqui e fazer carreira para fora e eu acreditei naquilo. Na época a reitora era Maria da Glória Sá Rosa, ela chegou e me disse: meu filho, você é o mais novo da sua turma, vá embora daqui, se não der certo você volta que eu já garanti seu emprego como professor, vá embora ser artista. E eu fui. Dei a sorte de quem corre atrás e meu primeiro emprego foi ser contratado pelos Os Trapalhões, fiz filmes, fui até figurante nas cenas, e depois que eu havia me estabilizado fui procurar os jornais. Larguei tudo e fui para o Jornal do Brasil. Nesse momento eu liguei para o Ziraldo. Mas ele não se lembrou de mim. Depois nos reencontramos, contei isso a ele. Tem até um documentário em que eu falo isso dele. E essa é minha história, sempre indo e vindo para cá.
Agora estou muito feliz porque finalmente vou fazer meu primeiro trabalho na minha terra depois de tantos anos. Recebo encomenda do Brasil inteiro. Trabalhei muito na TV Globo, trabalhei com o Chico Anísio também. Fui buscar bagagem e preciso agora passar isso aos jovens. Alguma coisa em mim quando estava aqui já sabia que tinha que fazer aquilo que me dava prazer. Como um menino de uma família humilde foi fazer uma coisa chamada arte. Eu era incoerente com o meio que eu vivia, e a explicação está nessa transferência da informação, pois quero que outros meninos saiam daqui e façam sucesso.
Eu fui um dos primeiros cartunistas a utilizar o computador e fui muito combatido pelos clássicos, os dinossauros da arte. Diziam que isso não era arte. Eu compreendo a visão deles, mas sempre enxerguei as mudanças como uma ferramenta de trabalho. Faço até animatronics, que são esculturas que andam. Se não acompanharmos a evolução não vai sobreviver e nem levar seu trabalho para frente. Como uma criança vai ter acesso a arte se as ferramentas que ela está acostumada a trabalhar não fizerem arte?
A escultura do Manoel será de bronze e vai durar mais ou menos uns dois mil anos. E essa referência de Manoel é tão importante para a cultura do futuro que esse é um legado que espero estar deixando para as gerações, que pessoas possam ver que ele pensava além do tempo deles.