Quando a serpente rompe a casca do ovo e não é, de imediato, esmagada, ela sai espargindo a peçonha até contaminar todo o organismo democrático. As consequências, como é sabido, vêm depois, e não há mais do que reclamar.
Nosso governo, no auge do respaldo popular, pois recém-saído de eleições presidenciais vitoriosas (com dificuldade embora), renunciou ao dever republicano de assumir o comando político do país e ditar-lhe o rumo, quando, em janeiro de 2023, fomos agredidos – o país, seu povo –, por uma tentativa de sublevação institucional. O vácuo ensejou a presença de novos agentes, e um deles é o STF. Ficamos, pelo menos aparentemente, na plateia. Nossos partidos sem iniciativa. Como se tudo tivesse começado e terminado ali.
A violência e os atos de depredação de 8 de janeiro, organizados sob a direção e a omissão colaborativa de oficiais e comandantes de quartéis, deveriam cumprir o papel de estopim para mais um golpe-de-Estado em extensa lista que parece não se fechar jamais. Tratava-se de impedir a posse dos eleitos, a obsessão do capitão prófugo e seus generais. As condições subjetivas para o levante já vinham sendo preparadas por Jair Bolsonaro e seus asseclas desde o início do mandato, com seus discursos, sua prática e a permanente descaracterização do processo eleitoral.
A simbólica depredação do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF foi o ato mais significativo da contestação da institucionalidade mediante a violência, mas não foi o único. Em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação dos eleitos, outra malta de celerados havia levado a cabo em Brasília uma série de atos terroristas e tentado explodir o aeroporto da cidade. Tudo visto e monitorado pelo governo do capitão, tudo ignorado pelas autoridades que se aprestavam à subida da rampa do Planalto dali a alguns poucos dias. Sem despertar a curiosidade, ou pelo menos a estranheza, de nossos observadores e estrategistas.
Os inquéritos que a Polícia Federal acaba de encaminhar ao STF informam a um país assustado que em novembro de 2022, ou seja, logo após as eleições presidenciais, fôra maquinado por generais da ativa e da reserva um plano macabro que, para manter no poder o capitão delinquente, derrotado em sua tentativa de reeleger-se. A trama assassina visava a eliminar Lula e Alckmin (presidente e vice-presidente eleitos) e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e a consequente implantação de mais um golpe militar.
Uma vez mais – e até quando?- os fardados investiam contra a democracia, uma democracia eternamente adolescente e frágil, inscrita nos textos constitucionais sem ter atrás de si a força de uma nação que nela se reconheça, em país por ser e um povo em busca de seu destino, indeciso sobre o que é e o que pretende ser.
O inquérito policial, já à espera do pronunciamento do Procurador-Geral da República, arrola uma quadrilha de criminosos comuns, mais perigosos que os milicianos e os traficantes dos morros cariocas e das favelas paulistanas, seja pelos cargos que ocupavam, seja pelas armas do Estado que controlavam, seja pela responsabilidade que lhes devia inspirar a farda.
Uma força militar que viola sua obediência à Constituição e às leis do país, que trai seu chefe e conspurca seu juramento, não pode inspirar confiança, nem está moralmente preparada para nos defender de eventual ameaça estrangeira.
Até aqui, nada obstante tantos golpes de Estado que perpetraram ao longo da história republicana, os fardados jamais haviam sido flagrados pelo poder civil em maquinação tão covarde. Mas há um fato novo a pedir registro: depois de pilhados, serão, pela primeira vez, julgados e condenados (é este pelo menos o sentimento do país) a partir de quando a república se restabelecerá e a democracia respirará sem medo – ao menos por algum tempo…
A democracia brasileira é uma relíquia débil, quase desconhecida pela maioria do nosso povo, mantida onde se guardam os objetos sem uso, e enquanto sem uso, defendida por liberais e conservadores. Eis por que é facilmente abatida quando alça voo, comprometendo com o clima de liberdade a concordata que assegura o poder político da classe dominante que herdamos dos engenhos. Para Sérgio Buarque de Holanda essa democracia que vemos tão raquítica não passa de promessa posta na mesa das negociações, “uma ideia em que o povo se deixa levar, mas que não se realiza plenamente”. Um mal-entendido, sempre ameaçada quando em distonia com a ordem, o sonho mágico do castro, que confrange o progresso e alimenta a desigualdade social.
Pois mesmo essa democracia que trata com desrespeito seu povo – ao ponto de negar-lhe vida digna, e “normalizar” a desigualdade obscena – é vista como estorvo pelo grande capital. Este, sempre que se imagina ameaçado, aciona sua guarda pretoriana, e a primeira vítima é o regime democrático. Daí os tantos golpes e as ameaças de golpe, as revoltas militares, as intentonas, os governos de exceção que marcam nossa vida republicana.
Nada obstante a história conhecida, em que pese a evidência do elo entre a conciliação e o crime, tramita no Congresso projeto de lei que visa a anistiar os criminosos de janeiro de 2023. Os delinquentes do regime de 1964, os golpistas que engolfaram o poder subtraído do povo, e os criminosos comuns, militares e civis dos serviços de repressão, torturadores e assassinos, foram brindados em agosto de 1979 por uma anistia ampla, geral e irrestrita. Antes haviam sido anistiados os criminosos de outros golpes. São eles e seus herdeiros e seus exemplos que nos atormentam hoje. A história entre nós se repete como drama, sem alterar os atores.
Um somatório de fatos recentes fornece ao Governo Lula a oportunidade para se fortalecer e esquivar-se do corner: 1) a mobilização pelo fim da escala 6×1, que fala à classe trabalhadora e racha a base popular da extrema-direita; 2) o malfadado – e ainda não esclarecido – atentado a bomba em Brasília, obra tresloucada de um néscio açulado pela cantilena do bolsonarismo; e 3) somado a ele, a escandalosa revelação (referida acima) do plano de assassinatos gestado no núcleo militar do bolsonarismo, que deixa o capitão, e não só ele, a poucos passos da jaula que lhe cabe.
Havemos de confiar que o líder da frente ampla que derrotou o protofascismo, animado pela ótima reunião do G-20, em que de certa forma conduziu o mundo, aproveitará a oportunidade para sair do canto do ringue e tomar em suas mãos a condução do poder político. As condições subjetivas e objetivas parecem estar muito próximas. Pode ser que Lula recupere a bola e tenhamos um segundo biênio novo.
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Duas perguntas ao ainda Ministro da Defesa (inspiradas em texto de Gilberto Maringoni) – Quando os contratos das FFAA com a Starlink do extremista Elon Musk serão rompidos? Os setores de inteligência do Estado brasileiro investigam as conhecidas conexões entre a extrema-direita dos EUA com seus congêneres aqui?
O golpe fiscal da classe dominante – Os burocratas e os procuradores da Faria Lima, em funções de governo ou não, os jornalões e a telona clamam pelo mágico “ajuste fiscal” e malham na necessidade de corte dos gastos. Realmente, há gastos, uns injustificáveis em si, outros exagerados. Por exemplo: Forças Armadas: R$ 86,8 bilhões; incentivos fiscais para empresas: R$ 97,7 bilhões em 2024 até agosto; custos com emendas parlamentares: R$ 44,67 bilhões para 2024. Total: R$ 229,17 bilhões. E há a generosidade injustificável do Plano Safra 2024/2025: nada menos que R$ 400,59 bilhões doados aos gigantes do agro, inclusive os mais endividados, sem qualquer exigência de contrapartida.
Ainda o golpe fiscal – Mas onde os delegados do grande capital querem cortar investimentos? Nas despesas que visam à proteção social: Benefício de Prestação Continuada (R$ 30 bilhões); Bolsa Família (14 bilhões); universidades federais (5,5 bilhões); Vale Gás (3,7 bilhões); Farmácia Popular (3,4 bilhões); Lei Rouanet (2, 5 bilhões); SAMU (1,7 bilhões). Total: R$ 60,8 bilhões. É outro golpe, mais sutil que a trama dos Brancaleones bolsonaristas, mas que igualmente cuida de inviabilizar o projeto consagrado nas urnas. E cobra vidas.
O sionismo ataca na PUC-SP – Os professores Reginaldo Nasser e Bruno Hubermann estão sendo ameaçados de exclusão do corpo docente por serem, como toda pessoa decente, contra o genocídio dos palestinos. O execrável lobby sionista, sempre ativo entre nós, caracteriza essa integridade moral como “antissemitismo”. Que nos diz a Associação dos Docentes? Que nos diz o sindicato dos professores?
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*Com a colaboração de Pedro Amaral