Brasileiros usam modelos matemáticos contra covid-19

Foto: Divulgação

Diferentemente de pandemias anteriormente enfrentadas pela humanidade, a da covid-19 ocorre num mundo baseado – e relativamente organizado – em dados. As ciências exatas se mostram agora fundamentais para combater a doença, por meio de modelos matemáticos que usam dados para prever a propagação do vírus e que podem ajudar autoridades a definir suas ações.

No Brasil, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), criou uma ferramenta capaz de projetar a necessidade de leitos em municípios brasileiros de pequenos e médio porte – desenhada para atender a localidades com até 500 mil habitantes. Para tanto, os cientistas desenvolveram um sistema a partir de parâmetros epidemiológicos publicados em artigos científicos. Assim, as variáveis que interferem em uma previsão – taxa de transmissão do vírus, taxa de internação e tempo médio em que um paciente fica em uma UTI, por exemplo – acompanham pesquisas mais recentes sobre o tema. Atualizada em tempo real, a ferramenta é capaz de considerar o estágio em que se encontra o distanciamento social em cada localidade, bem como o status da pandemia.

“Quase todos os parâmetros podem ser escolhidos pelo usuário, o que aumenta a capacidade da ferramenta de produzir estimativas de acordo com as necessidades de cada um”, explica o pesquisador Bruno Nunes, professor da UFPel e um dos desenvolvedores do sistema. “O sistema fornece as informações de base, mas o usuário pode mudar os valores de referência, se julgar que é mais adequado para sua realidade.” “Obviamente, várias ressalvas devem ser levadas em consideração no uso do modelo. No próprio site da ferramenta, todas essas considerações estão bastante destacadas para evitar equívocos de interpretação das estimativas.”

Nunes afirma que mais de 250 pessoas de todo o Brasil já acessaram a plataforma, lançada no dia 21. O sistema já vinha sendo desenvolvido pela universidade e acabou disponibilizado de forma prematura e experimental, justamente para atender às necessidades impostas pela pandemia. À frente de computadores, o matemático Jones Albuquerque, epidemiologista computacional desde 2006, também usa fórmulas matemáticas e conhecimentos de programação para compreender as curvas de propagação do novo coronavírus. Vice-coordenador do Instituto para Redução de Riscos e Desastres da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e do Laboratório de Imunopatologia Keizo-Asami (Lika) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ele diz que o objetivo é fazer com que esse conhecimento sirva para profissionais de saúde e gestores públicos na hora de planejar as ações de contenção.

Uma de suas ações é a produção diária de um relatório técnico, fornecido a órgãos como governo de Pernambuco e o Ministério da Saúde, que esmiúça a situação na região. Na última segunda, por exemplo, o documento continha 111 páginas. Mostrava a incidência da doença por microrregiões, os índices de testagem realizados e as curvas de crescimento, localidade por localidade. Para esse trabalho, Albuquerque atua com um grupo de matemáticos e de especialistas em Tecnologia da Informação (TI).

Especificidades de cada região

Na Universidade Federal de Viçosa (UFV), o físico Silvio Ferreira é outro cientista que se dedica a compreender numericamente a epidemia. Ele integra um grupo de trabalho em conjunto com pesquisadores espanhóis – e busca aplicar o método ao que ocorre atualmente no Brasil. “Desde 20 de março, estamos integralmente nos dedicando a isso”, comenta à DW Brasil. “Modelos matemáticos permitem acompanhar a evolução de processos epidêmicos. Em nosso trabalho, consideramos cada município brasileiro como uma estrutura, mas, ao mesmo tempo, colocamos o fluxo de pessoas entre os municípios em nossa modelagem. Assim, conseguimos seguir a trajetória do processo epidêmico”, afirma.

Dessa forma, consegue-se prever o número de infectados e as diferenças entre as ondas epidêmicas em diferentes lugares do país. Para Ferreira, um grande problema de como as decisões de agentes públicos vem sendo tomadas é que se considera o país como um todo, sem olhar para as peculiaridades locais.

O cientista considera que observar a mobilidade que ocorre entre cidades e regiões dá a certeza de que as políticas de contenção, do isolamento social ao confinamento, precisam ser diferentes em cada lugar, porque “o impacto da epidemia, o tempo de duração e a quantidade de infectados vai depender muito da região”. “Políticas uniformes e homogêneas para todas as regiões não levam em conta essas especificidades. É preciso estudar de forma integrada o país inteiro, mas ao mesmo tempo é preciso planejar a preparação de cada uma das cidades de maneira específica”, diz.

O problema?

Os dados de mobilidade estão desatualizados. Em sua pesquisa, ele utiliza números fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de acordo com o censo de 2010 – ciente de que há uma defasagem. Antes da chegada da covid-19, Ferreira já estudava epidemias. É sua área de pesquisa desde 2010. A diferença está em acompanhar um processo real, na prática, à medida que ele ocorre. “Sempre estudei aspectos fundamentais de uma epidemia, dentro da área de estudo teórico de modelagem de epidemias”, relata. “Agora estou estudando os aspectos aplicados.”

Ele admite que, para o público comum, o tema causa certo estranhamento. “As pessoas me perguntam: ora, você é físico, como assim está trabalhando com epidemias?”, conta. “Nós, da física, somos treinados para conseguir abstrair as coisas. Conseguimos fazer modelos simplificados, mas que, ao mesmo tempo em que desprezam vários detalhes do problema real, nos permitem pinçar os detalhes que conseguimos descrever muito bem. Isso é fundamental.”

Contexto da epidemia

No fim de semana, quando o Brasil atingiu a marca de 10 mil mortos oficialmente em decorrência da covid-19, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) divulgou uma projeção que mostra que, se medidas de contenção não forem tomadas, o número de óbitos pode dobrar em 20 dias – e o país terá 400 mil casos registrados até o dia 5 de junho.

O cálculo foi feito por pesquisadores do Instituto de Matemática e Estatística (IME), da Faculdade de Saúde Pública e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade de Atuária (FEA) da instituição, graças a um projeto de colaboração com o corpo técnico do governo paulista. “[A ideia é] construir um modelo de auxílio à tomada de decisão sobre possíveis cenários de isolamento social otimizando medidas de epidemiologia e economia”, afirma à DW Brasil o engenheiro elétrico Junior Barrera, diretor do IME e coordenador do projeto.

“Temos um sistema de controle no qual a planta é São Paulo e os parâmetros a serem otimizados são o estado da epidemia, sendo o ideal o mais reduzido possível, e a atividade da economia, [sendo o ideal] o mais ativo possível. Essas duas medidas são opostas, e o problema da otimização é conseguir equilibrar medidas diferentes e opostas, ou seja, quando uma melhora, a outra tende a piorar”, explica.

Depois de desenvolvido, o sistema permite intervenções feitas por um gestor público. E essas intervenções, naturalmente, geram previsões diferentes sobre o avanço da epidemia. “Há diversas soluções possíveis, inclusive isolamentos diferentes da cidade. Podemos prever o que ocorre quando se interrompe uma via, um conjunto de vias, deixa sem atividade alguns distritos”, exemplifica o engenheiro. É por isso que os pesquisadores não consideram a ferramenta um sistema pronto: ela precisa ser alimentada com os elementos de mobilidade, economia e epidemiologia de cada cidade. Na tarde de segunda, ele apresentou os últimos dados a uma equipe do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do estado de São Paulo.

“Com a matemática, podemos prever vários cenários, modificando o que acontece na situação real. E isso pode ajudar um governante a tomar decisões”, argumenta Barrera. “A matemática permite prever mais do que a epidemia, mas o contexto em que a epidemia está inserida, a dinâmica das cidades, a influência da economia e o ruído causado pela epidemia. Com simulações, esperamos auxiliar as decisões tomadas [pelos gestores públicos].”

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