Cinquentenário de falecimento de Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970)

Gamal Abdel Nasser (1918-1970) – Foto: Arquivo

Setembro de 1970. As ovações ao tricampeonato da Seleção Canarinho ainda ecoavam pelos quatro cantos do país enquanto eram sufocados os gemidos das masmorras, nos piores dias do regime de 1964 (entre 1968 e 1973). Na pacata Corumbá, o querido Amigo Orlando Bejarano (cunhado do Professor Huguinho) e eu estávamos, na tarde do dia 28 (acredito que uma terça-feira), estudando para uma prova de Inglês, ministrado pela querida e competente Professora Suzana Maia, titular da disciplina no Ginásio Industrial Dr. João Leite de Barros, quando meu saudoso Pai nos surpreendeu, em indisfarçável estado de comoção, com a notícia do súbito falecimento do grande líder pan-arabista Gamal Abdel Nasser, aos 52 anos, então presidente da República Árabe Unida (nome do Egito durante pouco mais de uma década), vítima de um infarto fulminante quando retornava do aeroporto internacional do Cairo, depois de despedir as delegações de chefes de governos que participaram de um encontro da Liga dos Estados Árabes na capital egípcia, na tentativa de solucionar e apaziguar os ânimos dos líderes árabes revoltados pela repressão a centenas de ativistas palestinos na Jordânia, massacre mais tarde conhecido por Setembro Negro.

Não é demais lembrar que o Rei Hussein, de uma suposta “dinastia hashemita”, da Jordânia, nunca passou de um servil tirano, fantoche do Ocidente, entronizado por meio de um ardil do império britânico, que ao abandonar o território da Transjordânia (antigo nome, por conta do Rio Jordão, dos tempos bíblicos) deixou seus aliados tomando conta da porção árabe da Palestina, ocupada desde 1948 pelos sionistas, que em maio (dia 15) instalaram um governo para nunca mais deixar aquele território milenar e espalhar seitas fundamentalistas com o afã de “igualar”, bem aos moldes fascistas, os lados do conflito, um nefasto modo de justificar que a razão da interminável questão israelo-árabe é religiosa. O mesmo, aliás, os colonizadores fizeram no Egito, onde impuseram o Rei Faruk, deposto por Nasser e demais jovens oficiais egípcios contrários à subserviência do títere com máscara real, em 1956. Nada diferente foi no Marrocos, onde deixaram o Rei Hassan como feitor; na Arábia Saudita, onde reina até hoje uma fictícia (e medieval) “dinastia wahabita”, que por fazer o jogo dos “donos do mundo” de hoje, Estados Unidos e Israel, não sofrem qualquer tipo de sanção pelas violações sistemáticas dos direitos humanos, num regime tirânico, sanguinário e intolerante com os que ousam defender princípios verdadeiramente democráticos em seu território.

Mas, voltando à súbita (e suspeita) morte de Nasser, o maior líder árabe dos últimos trezentos anos, os 22 países árabes, a totalidade das nações asiáticas e africanas, todos os Estados socialistas e boa parte das nações latino-americanas se uniram na dor, por semanas a fio, fato comparado aos funerais de Jawaharlal Nehru, seis anos antes. Depois da interminável despedida ao líder árabe, começaram a circular notícias, nunca desmentidas, de que emissários da Irmandade Islâmica (com o apoio do Mossad, o serviço secreto israelense), arqui-inimiga do presidente egípcio, laico e anticlerical, teriam envenenado o incansável inimigo dos invasores ocidentais, a despeito das duas derrotas sofridas entre 1954 e 1967 contra o Ocidente.

Ao contrário dos autoproclamados líderes árabes de seu tempo, Nasser causava muita preocupação ao Ocidente (sobretudo aos Estados Unidos e Israel) por ser um estadista laico e pró-socialista, mas sem curvar-se aos ditames soviéticos –- tanto que foi um dos fundadores do Movimento dos Países Não Alinhados, ao lado de Broz Tito, Nehru e Sukarno -– além de ter sido determinante na criação da Organização da Unidade Africana e da Liga dos Estados Árabes, enfraquecidas depois de sua morte prematura. Internamente, Nasser foi responsável pela modernização do Egito, pela promulgação de uma Constituição republicana democrática de forte perfil socialista (mas não estalinista), pela construção de importantes obras de infraestrutura, como a represa de Assuã, em seu tempo a maior do mundo (construída em cooperação com a União Soviética), e a malha rodoferroviária que integra o território do Egito aos demais países do Norte da África, cuja conclusão foi preterida por Anwar Sadat e Hosni Mubarak, respectivamente, durante o longo período de arbítrio e entreguismo protagonizado pelos dois fantoches ocidentais.

Gamal Abdel Nasser foi um generoso estadista árabe que inspirou muitos líderes do então chamado Terceiro Mundo a promover mudanças estruturais em seus respectivos países, além de ter incentivado, em toda a África, as corajosas lutas pela emancipação do jugo colonial europeu. Quarenta e quatro anos depois de sua morte (ainda não esclarecida), reverenciar a sua digna memória é, acima de tudo, um gesto libertário, um ato da saudável rebeldia disseminada nas duas décadas posteriores ao pós-guerra de 1945, quando a humanidade com perplexidade conheceu sem máscaras a intolerância e o ódio germinado na autoproclamada “civilizada” Europa de todos os holocaustos, de todas as inquisições e de todas as cruzadas. Mas como não há mal que dure cem anos, cá estamos a saudar o novo amanhã junto às novas gerações…

*Ahmad Schabib Hany

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