Corumbá e a edícula da Calógeras

Anos derradeiros do regime de 1964. Na esquina da avenida Calógeras com a rua Dom Aquino, defronte à imponente agência da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e à primeira agência do banco Itaú, em Campo Grande, havia um modesto, mas histórico edifício pomposamente denominado “Corumbá”. Relativamente funcional, abrigava vários escritórios de advogados e outros profissionais liberais. Diziam, na década de 1980, ser de propriedade do advogado Salomão Francisco Amaral, um pernambucano, corumbaense por adoção, engajado às causas sociais, o que lhe custou muitas dores de cabeça no início do regime. No período mais duro, com a sua nomeação como secretário de Interior e Justiça pelo amigo e contraparente José Manoel Fontanilhas Fragelli, governador de Mato Grosso entre 1971 e 1975, fez uma próspera carreira pública, encerrada em 1998 como procurador-geral do Estado no derradeiro governo de Wilson Barbosa Martins, outra vítima da “dita cuja”.

O edifício Corumbá tem um sentido simbólico para a história política de Mato Grosso do Sul por ter sido palco de importantes reuniões pela redemocratização do Brasil, antes e depois da Anistia de 1979. Pelo menos uma de suas modestas salas abrigou importantes legendas engajadas na inimaginável construção do Estado Democrático de Direito, em tempos mais cruentos. O emblemático Movimento Mato-grossense de Anistia e Direitos Humanos, presidido inicialmente pelo saudoso advogado Ricardo Brandão, foi praticamente concebido lá, embora suas reuniões públicas fossem sediadas na imponente sede da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, na esquina da então Cândido Mariano com a Pedro Celestino, presidida à época por ninguém menos que Wilson Barbosa Martins. Como calouro da extinta FUCMT e modesto integrante do movimento estudantil, pude conhecer personagens históricos, como o próprio Ricardo Brandão, o igualmente saudoso Plínio Barbosa Martins, os Amigos Fausto Matto Grosso, Marcelo Barbosa Martins, Américo Antônio Flores Nicolatti e o agora saudoso Mário Corrêa Albernaz.

É bom que se esclareça que o ilustre advogado não tem qualquer parentesco com o ex-senador Delcídio Amaral Gómez, humilhantemente preso e cassado em pleno exercício do mandato sem a devida defesa de seus pares, ao contrário de seu colega igualmente denunciado Aécio da Cunha Neves, objeto de uma generosa votação não só no Senado como no Supremo Tribunal Federal. Muito diferentemente que o engenheiro lobista que entrou para a história como o primeiro senador preso e destituído de seu mandato em plena vigência do Estado de Direito, o advogado Amaral se caracteriza por ser um incansável defensor do patrimônio público, como quando patrocinou a ação popular contra o enigmático leilão da Metamat, estatal mato-grossense detentora da maioria das ações da Urucum Mineração, em que a então Companhia Vale do Rio Doce saíra vencedora numa conta que não fechou: oito milhões para Mato Grosso e seis milhões para Mato Grosso do Sul (quando o total divulgado foi de dezoito milhões). Ironia da história, pelo menos quatro corumbaenses estavam em posições opostas: Fragelli, Salomão e Armando Lacerda versus Delcídio, então ministro interino de Minas e Energia de Itamar Franco.

No entanto, uma semana depois das comemorações oficiais pelos quarenta anos da sanção da Lei Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977 (que dividiu Mato Grosso em dois estados), ouso fazer este desabafo para compartilhar com o(a) leitor(a) que Corumbá – não o edifício, mas o município –, trinta e oito anos depois da criação de Mato Grosso do Sul, não passa de edícula da Calógeras, isto é, de reles “puxadinho” do quadrilátero central de Campo Grande. Menos relevante que o edifício homônimo abordado no início. Explico-me: depois que o governador-tecnocrata Harry Amorim Costa, empossado em 1º de janeiro de 1979, foi destituído, em 13 de junho do mesmo ano (um dia depois da promulgação da primeira constituição do estado, por ingerência do então senador Pedro Pedrossian, ávido por mais espaço político), Corumbá e sua população não obtiveram conquistas, mas retrocessos, além de infindáveis promessas jamais realizadas – é, aliás, atribuída ao próprio Pedrossian a cínica lógica de que, para alegrar Corumbá, é só anunciar o cancelamento de alguma obra em Ladário, e assim reciprocamente.

A bem da verdade, com exceção de breves momentos de fugaz atenção durante os governos de Wilson Barbosa Martins e de José Orcírio Miranda dos Santos, Corumbá e sua população não passam de figurantes, muitas vezes inconvenientes ou folclorizadas, de uma história protagonizada quase o tempo todo por medíocres “líderes” políticos de si mesmos. Ou o que são, no frigir dos ovos, Marcelo Miranda Soares, Levy Dias, Mariza Joaquina Serrano, André Puccinelli, Nelsinho Trad, Carlos Marun, Waldemir Moka Miranda de Brito, Simone Tebet, Reinaldo Azambuja, Delcídio Amaral Gómez, Pedro Chaves dos Santos e Ruben Figueiró de Oliveira. Até a comemoração dos “40 anos de Mato Grosso do Sul” – um verdadeiro erro grosseiro histórico! – patrocinada pelo governo do estado, ficou restrita a Campo Grande, numa acintosa celebração excludente, como quase tudo neste estado.

Afinal, é só recorrer às hemerotecas dos diários de circulação nacional da década de 1970 (não preciso citá-los, pois estão disponíveis na internet) para entender por que Rio de Janeiro e Guanabara foram fundidos (o termo era fusão Rio – Guanabara) e Mato Grosso dividido: suprimir três vagas de senadores e algumas vagas de deputados da oposição no Rio, além de criar três novas vagas de senador e algumas vagas de deputados da situação em Mato Grosso do Sul. A lógica perversa obedecia à necessidade de sobrevivência da Arena, o partido da ditadura, que estava prestes a perder a maioria no Senado. Não por acaso, em abril de 1977 (portanto, meses antes da divisão de Mato Grosso), o Planalto decretara o recesso do Congresso Nacional para impor uma reforma autoritária no Poder Judiciário e outra no Poder Legislativo, em que o Senado, por decreto, ganhou um terço de senadores sem votos, os chamados de senadores biônicos.

Herança maldita da ditadura, Mato Grosso do Sul, até a presente data, não representa nem atende aos interesses da maioria da população, sobretudo do Pantanal. Sem qualquer ranço bairrista, mas o reencontro de Corumbá com o porvir passa pela reunificação do Pantanal Mato-grossense, de Cáceres até Porto Murtinho. Não é para nossos dias, mas a exemplo da luta empreendida pelos divisionistas das décadas de 1930 a 1970, os, digamos, reunificadores do Pantanal deverão ir reunindo força política para fazer história, em que a redenção de Corumbá e das demais cidades pantaneiras será uma consequência política, uma conquista cidadã. Esperemos – de pés juntos! – que sem recorrer ao casuísmo de algum temerário ditador de plantão…

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