Marçal foi assassinado em 25 de novembro de 1983, três anos depois da conversa que teve com o papa. Negou-se a aceitar o dinheiro ofertado por um fazendeiro, como suborno, para que abandonasse a luta pelos tekohas – lugar onde se é – dos Guarani e Kaiowá. Assim disse Marçal ao papa João Paulo II, na ocasião: “Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, Santo Padre. O Brasil foi invadido e tomado dos indígenas. Esta é a verdadeira história de nosso povo, Santo Padre. Eu deixo aqui o meu apelo, apelo de 20 mil índios que habitam, lutam pela sua sobrevivência, nesse País tão grande e tão pequeno para nós”. Eram 20 mil, hoje são quase 1 milhão (IBGE, 2010).
Trinta e dois anos depois, e com a promulgação da Constituição Federal no meio, Elizeu Guarani e Kaiowá diz sobre o encontro com o Papa Francisco, durante visita do Sumo Pontífice ao continente latino-americano: “Ele me recebeu com um sorriso, estendeu a mão e me escutou, coisa que a presidente e os governantes brasileiros, mesmo sabendo de nossa situação, nunca fizeram, e se negam a fazer. Eu pedi a ele que interceda por nós, que ajude a fazer o governo brasileiro cumprir a Constituição e demarcar nossos territórios, que o próprio Poder Executivo paralisou. Disse que por causa disso, em todo Brasil, e em especial no Mato Grosso do Sul, vivemos em guerra, que estamos morrendo, sendo massacrados por pistoleiros armados e pelos políticos do agronegócio, que sobre nós existe um verdadeiro genocídio. Pedi pelo futuro de nossas crianças e velhos, para que possam continuar existindo”.
Duas lideranças Guarani e Kaiowá, dois papas e um contexto intermitente de genocídio contra os povos indígenas. Francisco ouviu e se comprometeu com os povos indígenas do Brasil, como já o fez em outras ocasiões. Dessa vez, a postura engajada do líder da Igreja Católica se deu durante o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, ocorrido na semana passada em Santa Cruz, na Bolívia. Elizeu Guarani e Kaiowá conversou com o Sumo Pontífice e entregou-lhe uma carta (leia abaixo). O indígena, porém, não falou apenas do que sofre os Guarani e Kaiowá e se dirigiu ao papa representando a luta dos quase 1 milhão de indígenas do país, que não é só por terra, mas, sobretudo, para “que possam continuar existindo”, nas palavras do próprio Elizeu.
A passagem do papa pela América Latina, que percorreu o Equador, a Bolívia e o Paraguai, balançou as estruturas conservadoras no continente e no mundo. Com discursos de alto teor anticapitalista, incentivando aos oprimidos que se organizem e lutem por terra, teto e trabalho, além de ter aceitado do presidente Evo Morales uma foice e martelo com Jesus Cristo crucificado, feito pelo jesuíta Luis Espinal Camps, assassinado em 1980 depois de ser barbaramente torturado por autoridades militares bolivianas, Francisco, também um jesuíta, declarou: “Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos”.
Elizeu Guarani e Kaiowá e seu povo também não suportam mais o “sistema” – no caso, capitalista e colonial. O agronegócio e o histórico de ocupação violenta das terras indígenas pela colonização levam a uma das realidades mais trágicas que se tem notícia no mundo: centenas de suicídios, atropelamentos, assassinatos, crianças mortas pela fome, uma vida debaixo de lonas, em retomadas atacadas por pistoleiros ou em acampamentos às margens das estradas – entre a cerca e o asfalto. Elizeu, por exemplo, é uma liderança de Kurusu Ambá, tekoha – lugar onde se é – no cone sul do MS. Vive, assim como Marçal Tupã-Y, ameaçado de morte e faz parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.
A atitude do papa já é muito mais do que o governo brasileiro vem fazendo, conforme Elizeu. Em sua Encíclica Ecológica, Francisco defende o direito dos povos indígenas ao território tradicional e os aponta como os principais defensores da natureza, da Mãe Terra – defendê-la, conforme o papa, é um dever urgente. Francisco não deixou de reconhecer, todavia, o que de ruim a Igreja fez contra os povos indígenas. Pediu perdão reconhecendo o mal causado como irreparável. Não apenas criticou os governos pela completa falta de escrúpulos com os direitos dos povos indígenas, mas na autocrítica reafirmou sua posição veemente e comprometida a favor destas comunidades.
Leia na íntegra a carta do povo Guarani e Kaiowá ao papa:
Carta dos Guarani e Kaiowá ao Papa Francisco
“Amado Papa Francisco,
Nós, povos indígenas do Brasil, sofremos um processo de ataque violento contra nossas comunidades, nossas lideranças e nosso direitos. Os Guarani e Kaiowá vivemos no estado do Mato Grosso do Sul enfrentamos as piores condições de vida, sofremos a violência mais profunda e uma situação de maior vulnerabilidade social e cultural no país. Somos cerca de 45 mil pessoas e vivemos no exílio, fora de nossas terras, que se encontram invadidas por fazendeiros que delas nos expulsaram em passado recente com o apoio do Estado brasileiro.
Em 2014, 138 indígenas foram assassinados no Brasil. Destes, 41 foram no estado do Mato Grosso do Sul. No mesmo ano, 135 indígenas se suicidaram no país, sendo que no Mato Grosso do Sul foram 48 indígenas mortos por suicídio. No Brasil, em 2014, 785 crianças indígenas morreram antes de completar cinco anos de idade. Destas, 55 foram no Mato Grosso do Sul. Muitas de nossas famílias vivem em barracos de lona em beiras de estradas no estado do Mato Grosso do Sul. Considerando apenas estes três tipos de mortes não naturais, em 2014, morreu um Guarani Kaiowá a cada dois dias e meio no Brasil. Isto constitui-se num verdadeiro processo de genocídio contra nosso povo.
Mesmo com essa situação dramática, o governo paralisou os procedimentos de demarcação das terras indígenas no Brasil. No Congresso Nacional, os ruralistas atentam a todo o momento contra nossos direitos fundiários, com proposições legislativas a exemplo da PEC 215/00 e o PL 1610/96. Inclusive alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do poder Judiciário, tem tomado decisões que anulam atos administrativos de demarcação de nossas terras dizendo que não teríamos direito às nossas terras porque não estávamos na posse física das mesmas na data da promulgação da Constituição Federal, a saber, 05 de outubro de 1988. Mas como estaríamos na posse de nossas terras se havíamos sido expulsos violentamente das mesmas e seríamos mortos pelos fazendeiros se tentássemos retornar a elas?
Nossa situação é de desespero. Precisamos de solidariedade e apoio. Sabemos da força de suas palavras. Pedimos sua solidariedade e apoio em defesa de nossos direitos e de nossas vidas.”
Grande Assembleia do Povo Guarani Kaiowá – Aty Guassu
Organização do Povo Guarani Kaiowá – Mato Grosso do Sul – Brasil
Bolívia, 09 de julho de 2015
Fonte: Assessoria de Comunicação – Cimi