Defensora do amplo acesso de pacientes ao tratamento oncológico, tanto na saúde pública quanto no sistema suplementar (planos de saúde), Cristina Guimarães Inocêncio é formada em Medicina pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e possui residência médica em Oncologia Clínica pelo hospital AC Camargo Câncer Center. Uma das fundadoras da Oncomed-MT, veio para Mato Grosso na década de 90. Na trajetória de luta pela vida de milhares de pessoas, também ajudou a criar o ITC (Instituto de Tumores e Cuidados Paliativos de Cuiabá) e o Gapcan (Grupo de Apoio ao Paciente Oncológico). Fruto da reconhecida atuação, foi convidada a ingressar na Câmara Temática da Oncologia na Assembleia Legislativa de Mato Grosso.
No Dia do Oncologista, celebrado no dia 9 de julho, a médica compartilha vivências e os desafios vividos ao longo dos 30 anos na Oncologia, 28 deles na capital mato-grossense.
1 – Qual o significado da Oncologia para a sua vida?
Dra Cristina: Eu não sei se eu já pensava assim ou se a Oncologia me fez passar a pensar: a vida é extremamente fugaz e foi feita para que realmente seja vivida. Parece redundante, mas é exatamente isso. A gente não consegue fazer tudo o que deseja, mas aquilo que você realmente quer fazer, faça bem-feito. A Oncologia mostra justamente isso. Sabe por quê? Porque muitas pessoas acabam ficando doentes justamente quando achavam que, “agora sim”, aproveitariam a vida. Ou então acreditavam que ainda tinham muito tempo pela frente – e de repente se pegam doentes. Por mais que você se cure de um câncer, existem sequelas. Em um dia você faz todas as suas tarefas, sozinho, consegue se pentear, escovar os dentes, se alimentar. E em outro você passa a depender de alguém. A Oncologia me mostrou que essa condição, de ser acometido pela doença, pode acontecer com qualquer pessoa. Acredito que isso deu mais significado para a minha vida, mais gratidão por aquilo que a gente tem. É o que também procuro passar, de sentimento mesmo, aos meus pacientes e familiares.
2 – Como foi a sua trajetória profissional, da opção por cursar Medicina até a escolha pela especialidade Oncologia?
Dra Cristina: Eu não consigo identificar quando foi que decidi pela medicina. Eu não decidi ser outra coisa, eu decidi ser médica. Lembro que ainda estava na escola e que tudo que fiz foi no sentido de conseguir cursar a faculdade de Medicina. Eu sempre gostei muito da área de Clínica Médica e eu não conseguia definir qual especialidade gostava mais. No sexto ano da faculdade, passei pelo Hospital de Câncer em São Paulo e gostei muito. A Oncologia era uma das especialidades onde eu tinha que ter contato com um pouco de todas as outras áreas. Eu tinha que ver o paciente como um todo. Eu tive acesso também a outra face, há mais de 30 anos: a gente lidava muito com a morte e com a Oncologia eu pude ver o paciente que sobreviveu, que ressignificou a vida. Desde então, tenho visto isso no dia a dia. É obvio que a morte ainda está presente, mas conseguimos estar mais próximos a esse outro lado, o da superação, através da luta pela vida. A gente se contenta ao ver pacientes que estão mais um ano no aniversário de um filho, há quem case e vai pra lua de mel, coisas pequenas e grandiosas. Conseguimos ver essa felicidade. É muito gratificante participar de tantas histórias de vida.
3 – Como a área da Oncologia é dividida?
Dra Cristina: É uma especialidade com várias subespecialidades. Existe a Oncologia Clínica, que é a área que vai coordenar o tratamento – mas sempre reforçamos que o tratamento do câncer é multidisciplinar. E é aí que entram o radio-oncologista e o cirurgião oncológico. Esse é o tripé que decide o melhor tratamento para o paciente. Temos também a Oncologia Pediátrica, que cuida de pacientes até 19 anos, e a Hematologia, área direcionada às doenças do sangue. O primeiro tratamento é sempre o principal, é o que concentra as maiores chances de cura. Então, é importante que toda equipe multidisciplinar discuta sobre o caso, antes do início do tratamento, para que aquela condução seja harmônica, no tempo, na sequência e na dose certa.
4 – Para o tratamento do câncer, a área médica da Oncologia é o suficiente, na sua avaliação?
Dra Cristina: É importante acrescentar a pesquisa. Existe o médico que está na linha de frente, atendendo os pacientes, mas é obvio que precisa também de outros na retaguarda, fazendo a pesquisa clínica, onde também entram outros profissionais da saúde, como biólogos, bioquímicos, biomédicos, farmacêuticos. O câncer é uma doença muito diferente: mesmo dentro de um mesmo tumor, existem outras várias doenças. O câncer de mama, por exemplo, tem vários subtipos e quanto mais direcionado e específico for o tratamento para aquele paciente, maiores são as chances de cura. Sem os médicos que estão produzindo conhecimento científico, se dedicando a pesquisas, a gente não conseguiria ter à disposição dos tratamentos as diferentes tecnologias que temos hoje.
5 – Quais são maiores desafios vividos, atualmente, por um médico oncologista?
Dra Cristina: Para mim é a equidade. Eu acho inadmissível atender um paciente na rede privada de uma forma e na rede pública de outra, de não termos as mesmas possibilidades. A gente está lutando para isso e por isso estamos no Comitê da Oncologia na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT). Muitas coisas já melhoraram e já conseguimos a realização de biópsias no Hospital São Benedito, em Cuiabá – o que não havia, por exemplo. Outro ponto é a não contabilização ou subnotificação dos casos. É um problema, porque não dá para instituir as políticas públicas do jeito que elas devem ser. Se não quantificar certo o número de pacientes, a idade, o sexo, onde eles estão e se há possibilidade de diagnóstico neste local, as políticas públicas de prevenção e tratamento são instituídas de maneira errada, às cegas. No Sistema Único de Saúde (SUS), isso é perceptível. Há uma falta de gestão – e não de dinheiro. Importante destacar que precisamos de políticas de prevenção e de educação continuada, porque quem tem o primeiro contato com o paciente com câncer é o médico que está na Unidade Básica de Saúde (UBS). É necessário levar educação continuada aos profissionais, por meio das Escolas de Saúde Pública, para que a gente possa educar esses médicos que estão na ponta para que eles tenham mais atenção em relação ao câncer.
6 – Evolução da ciência na área da Oncologia: o que se pode esperar para os próximos anos?
Dra Cristina: A tendência é ter tratamentos cada vez mais específicos, proporcionando mais qualidade de vida aos pacientes. O Car-T Cell é a inovação mais recente, onde você manipula as células, as trata e reinfunde no paciente. A imunoterapia também está mostrando grandes evoluções. Quando eu terminei a residência em Oncologia, a gente só tinha as drogas quimioterápicas normais. A quimioterapia tradicional, por exemplo, possui medicações que não sabem ao certo o que realmente precisam tratar, e por isso acabam atingindo todas as células do corpo e o paciente passa ter uma série de efeitos colaterais. Com a imunoterapia e a droga-alvo, por meio da biologia molecular, conseguimos identificar a proteína exata da célula tumoral a ser combatida e, consequentemente, ter menos efeitos colaterais, porque células saudáveis são preservadas.
7 – Qual a sua avaliação sobre a oferta de tratamento oncológico no Brasil?
Dra Cristina: De modo geral, acho que a gente tem uma excelente Oncologia, reconhecida mundialmente. Nossos médicos possuem cargos na Sociedade Americana de Oncologia e na Sociedade Europeia de Oncologia, com possibilidades de frequentar os congressos realizados por essas entidades. A qualidade das publicações também é ótima e temos acesso a elas. O gargalo está em não poder repassar todo esse conhecimento a todos os pacientes oncológicos, quando olhamos para o paciente SUS. Temos discutido a política pública de Oncologia na esfera nacional, estadual e municipal, e a mudança só vai acontecer se unirmos esforços e gestão bem-feita das três esferas.
8 – Que mensagem você gostaria de deixar para os pacientes oncológicos?
Dra Cristina: É necessário ter fé. A Medicina não consegue prever como será a reação de cada paciente ao tratamento – há casos que evoluem bem, outros não, e há aqueles que nos surpreendem. É preciso encarar a doença de frente. Não tem como fugir, fingir que o câncer não existe. O tratamento melhorou muito, a toxicidade e efeitos colaterais estão cada vez menores. É um período difícil, mas que é possível superar, com fé e com uma rede de apoio, de acolhimento. Essa positividade, essa crença de que tudo vai passar, faz a diferença no bem-estar do paciente.