Dom Paulo Evaristo, o Peregrino dos Direitos Humanos

Dom Paulo Evaristo Arns – Foto: Divulgação

No mesmo mês de dezembro em que se eternizou Dom José Alves da Costa, Bispo Emérito de Corumbá, o igualmente Cardeal Cidadão, Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo Emérito de São Paulo, quatro anos depois foi fazer o bom combate em outra dimensão, silenciosa e humildemente.

Jamais me esquecerei que, no meu início de juventude, precisamente nos intermináveis anos de chumbo e sangue impune, Dom Paulo, aquela pessoa cordial, gentil, afável, generosa e, sobretudo, corajosa, reta e com a clareza de causar medo a todo amante da tirania, com a sábia prudência e humildade que lhe eram peculiares, começou a ganhar os holofotes da imprensa, que começava a ganhar galhardia sob a bênção do incansável Peregrino – dos tempos modernos e dos então proscritos Direitos Humanos, irmão bastardo de Dona Democracia…

Anunciado em 1966, de maneira enigmática e sugestiva pelo também Cardeal Peregrino Dom Hélder Câmara, então Cardeal Arcebispo de Recife e Olinda, ao então repórter do “Correio da Manhã” (do Rio de Janeiro, fechado mais tarde pelo regime de 1964) Plínio Marcos – quando, ao final de uma entrevista, Dom Hélder, já sob censura, havia anunciado o surgimento de um Cardeal muito mais corajoso que ele, e logo na Arquidiocese mais populosa da América do Sul (São Paulo só perdia, na época, para a Arquidiocese do México).

Não é que a profecia do Cardeal nordestino se consumara? Dom Paulo Evaristo, a promessa de Hélder, veio reparar os danos causados pelo ímpio escárnio que a opressão silenciou, mas sem mágoas, sem rancores, sem ranços, mas risonho, cordial, afável, inclusivo, verdadeiro, solidário, pacífico, alentador, fraternal…

Dom Paulo Evaristo Arns – Foto: Divulgação

Com a necessária contundência e desenvoltura, somente revelou sua ascendência germânica durante a insidiosa pressão (e repressão) pós-assassinato do Jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, ocorridos simultaneamente como em afronta à autoridade do general Ernesto Geisel, cujo governo deu início à “abertura lenta, gradual e segura”, milimetricamente planejada pelo também general Golbery do Couto e Silva, ex-conspirador de 1964 e depois articulador do fim do regime.

Foi ao lado do pastor Jaime Whrite, da Igreja Metodista, e do então rebelde rabino Henry Sobel, da Sociedade Israelita de São Paulo, Dom Paulo transformou a Praça da Sé e sua imponente Catedral em centro irradiador das liberdades democráticas, ao acolher alguns milhares de opositores e descontentes com o regime para celebrar um culto ecumênico em defesa da Vida e dos Direitos Humanos.

Não demorou muito e criou a Comissão Brasileira de Justiça e Paz no âmbito de sua Arquidiocese e iniciou o corajoso monitoramento do(a)s preso(a)s político(a)s, do(a)s desaparecido(a)s, do(a)s torturado(a)s – enfim, do(a)s perseguido(a)s, do(a) mais anônimo(a) ao(à) mais renomado(a) perseguido(a) do regime. Dom Paulo, o Cardeal Peregrino, deu o primeiro passo para o resgate da memória do(a)s morto(a)s pelo arbítrio, até então impunes – foi ele a ousar criar o grupo de juristas notáveis, sob aquela Comissão, para o registro e elaboração do então inimaginável documento “Brasil: Tortura Nunca Mais”.

Dom Paulo Evaristo Arns – Foto: Divulgação

Em 1978, durante o conclave do Vaticano para escolher o sucessor do Papa Paulo VI, o igualmente afável e solícito Cardeal Luciano, que viria se transformar em Papa João Paulo I, declarou à imprensa brasileira que seu candidato a Papa, pelos relevantes serviços prestados ao legado de Cristo, era ninguém menos que Dom Paulo.

O mesmo querido Cardeal Arns fora um dos mobilizadores da cidadania brasileira para o primeiro comício das Diretas-Já na metrópole paulistana, no raiar de 1984, levantando em definitivo a célebre campanha das Diretas-Já e depois a candidatura democrática via Colégio Eleitoral de Tancredo Neves à Presidência da República.

Esteve com o também saudoso Sociólogo Herbert de Souza (o célebre “Irmão do Henfil” eternizado na canção-poema “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc na voz da imortal Elis Regina) que na gênese do Movimento Pela Ética na Política, que há mais de 25 anos denunciava a corrupção e protegia o Estado Democrático de Direito, representado pela então recém-promulgada Constituição Cidadã. Dom Paulo, Dom Hélder, Dom Mauro Morelli, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Avelar Brandão Villela (Cardeal-Primaz do Brasil) deram início ao maior movimento contra a fome e pela Vida, a Ação da Cidadania. E para reforçar, Dom Paulo deu apoio à Dra. Zilda Arns, por acaso sua Irmã, para fortalecer a Pastoral da Criança e produzir o extraordinário “maná” do século XX, a multimistura vitamínica para combater a desnutrição pelo mundo afora.

Nem mesmo depois de ter sido aposentado compulsoriamente em 1998, Dom Paulo deixou de promover os valores democráticos universais, por meio da defesa dos Direitos Humanos. Tão logo o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, enviou um emissário para fortalecer o Programa Fome Zero e, no âmbito da Constituição Federal, introduzir o direito à alimentação como mais um direito fundamental constante de seu Artigo 5º (que trata de uma das cláusulas pétreas do Estado Democrático de Direito).

Em todo momento crítico da história recente, aliás, sempre esteve a postos, solícito, firme, seguro, meigo, pacífico e afável, na defesa inarredável dos Direitos Humanos dentro e fora do Brasil. Com todo o respeito pela tradição católica de revelação de Beatos e Santos, mas ouso dizer que desde já Dom Paulo Evaristo está reunido com seus pares, em sua nova trajetória, para fortalecer os valores humanos universais, sempre em defesa da Vida e dos Direitos Humanos.

Obrigado, Dom Paulo, por ter existido! Até sempre, Peregrino dos Direitos Humanos! Que sua pugna incansável em defesa da dignidade humana encontre eco nas novas gerações de sacerdotes e missionários de todos as denominações religiosas, sobretudo nestes tempos de fundamentalismo de todos os matizes, em que o “deus-mercado” reina absoluto nas consciências nada ortodoxas das elites dominantes no mundo inteiro…

*Articulista

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