Do que a imbecilidade e a cobiça humanas, ou melhor, das elites endinheiradas da espécie humana (cada vez mais sórdidas e cínicas, as elites) são capazes, a despeito da flagrante e inegável exposição dos fatos proporcionada pela tecnologia?
Não caiamos no maniqueísmo primário da Rede Globo e dos demais grupos midiáticos que até pouco tempo estavam a referendar a farsa da ‘Leva Jeito’ para criar o ambiente ideal do golpe empreendido contra o Estado Democrático de Direito no Brasil em 2016. Com o maior acinte, hoje fazem de conta de que não são coniventes, como fizeram em 1964 e 1954 (quando Getúlio Vargas, para fazer o contragolpe, atentou contra a própria vida e adiou por dez anos a sanha dos golpistas).
À exceção dos experientes Jornalistas Jorge Pontual e Sandra Coutinho, a nova geração de repórteres há pouco contratados pela Globo para suas equipes em Washington e Nova York estão vivendo seu batismo de fogo durante a cobertura (tendenciosa, como sempre) da guerra recém deflagrada entre a Rússia e a Ucrânia. Dá pena, mas os rostinhos novos sendo usados como porta-vozes informais da Casa Branca e do Pentágono são mais um atentado ao Jornalismo cometido pela Vênus platinada.
No dia 25, em seu jornal do meio-dia, a Globo teve o cinismo de insistir em seu roteiro à la Joseph Goebbels (o arquiteto da propaganda nazista de Adolf Hitler) ao anunciar a reportagem de Ilze Scamparini, sua correspondente em Roma, sobre a visita do Papa Francisco ao embaixador da Rússia para promover uma tentativa de cessar-fogo e mediar uma solução diplomática para o já deflagrado conflito russo-ucraniano. Contradizendo a experiente Jornalista brasileira sediada em Roma há décadas, os editores do telejornal mantiveram ao longo da reportagem as legendas como que a visita fosse ao embaixador da Ucrânia, tal qual o abre lido pelo Jornalista Cesar Tralli, âncora do programa.
À guisa de reflexão, por que a Globo (como de resto toda a mídia empresarial) insiste em repetir, sem corrigir, que se trata “da primeira guerra em território europeu depois da Segunda Guerra Mundial”? E o genocídio cometido pelos sérvios (cujos conterrâneos, na Bolívia, se aliaram aos golpistas de 2019 e atentaram contra a Vida de inúmeros líderes populares originários) na Bósnia-Herzegovina, nos anos 1990, não caracteriza um ato bélico, uma guerra? Não é falta de memória, nem de arquivos. É falta de empatia. A mesma, aliás, em relação às vítimas das guerras promovidas pelas potências ocidentais contra Palestina, Síria, Líbia, Iêmen, Iraque e muitos outros países, africanos, asiáticos e latino-americanos. Trata-se do mesmo sangue humano derramado.
Vladimir Putin e Joe Biden são as duas faces da mesma moeda. Explicando melhor: nem heróis, nem bandidos. Nem fantoches, nem paladinos. Eles cumprem seu papel enquanto líderes de seus respectivos governos, integrados pelos falcões do Pentágono (no caso dos estadunidenses) e da velha guarda do Exército Vermelho (caso dos russos). Os que se preocupam com a geopolítica já cogitavam da possibilidade de ‘refrega’ entre Biden e Putin tão logo Donald Trump foi mandado para casa nas eleições de 2020. Os membros do Partido Democrata americano, desde o primeiro momento, davam sinais de uma aproximação estratégica com a China (diferente de Trump) e um distanciamento hostil com a Rússia, com cujos oligarcas Trump mantinha certa relação promíscua.
É bom lembrarmos que na história dos Estados Unidos a guerra, sobretudo em outros continentes, tem servido de oportunidade de negócios para se capitalizar cada vez mais; combustível funesto para seus projetos expansionistas pelo mundo afora (afinal, são filhote siamês do império britânico, mãe e pai das oligarquias estadunidenses), e, ainda mais, instrumento de dominação desde antes do pós-guerra de 1945. O ator que virou presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, ao sentir-se abandonado por seus aliados do ocidente, não está enganado ao denunciar a traição dos governos ocidentais que o deixaram em meio às escaramuças com Putin.
Não esqueçamos que, quando o ocidente, em plena experimentação das “primaveras” iniciadas ao final da primeira década do século XXI, forjadas em todos os continentes (com destaque para Fernando Lugo, do Paraguai, e Manuel Zelaya, de Honduras, na América Latina, sem falar das sanguinárias ações no Marrocos, Egito, Líbia, Sudão, Iêmen e Síria, no Oriente Médio) por meio das redes sociais, e o mesmo Biden, em 2014, então vice-presidente de Barak Obama, fez encontrinhos ardilosos com o pessoal da ‘Leva Jeito’ (quando o time de Moro e Dallagnol eram os ‘paladinos’ da ‘justi$$$a’ regada a milhões de dólares), esteve por trás da deposição de Viktor Ianukovytch, então presidente ucraniano declaradamente pró-Rússia, para preparar o terreno de uma Ucrânia de joelhos para a nada inocente OTAN (a Organização do Tratado do Atlântico Norte, criada no início da guerra fria contra a União Soviética, a aliada cujo exército conseguiu derrotar Adolf Hitler em seu próprio território, mas Truman preferiu despejar duas bombas atômicas — uma em Hiroshima e outra em Nagasaki — promovendo uma desnecessária mortandade de civis inofensivos e indefesos só para posar de protagonista de uma guerra já decidida pelo Exército Vermelho no território do inimigo).
Não justifico Vladimir Putin em sua ensandecida aventura bélica, até em respeito à dor das vítimas dessa e de todas as guerras e aos meus ancestrais vitimados pelas inúmeras guerras insufladas ou promovidas pelo ocidente no Líbano, Palestina, Síria, Egito, Líbia, Iraque e, inclusive, Bolívia. Mas nada de hipocrisia nem meias verdades: diferentemente do banana embolorado Mikhail Gorbachev e suas pirotecnias com a ‘Perestroica’ e a ‘Glasnost’ para o consumo do ocidente, criminosamente omisso quando do desmonte da União Soviética e do Pacto de Varsóvia (as até então únicas forças que se contrapunham contra o império ocidental e a sórdida ‘pax americana’), o atual líder russo, próprio da formação na linha-dura soviética em um passado não tão distante, movimenta seu jogo com a destreza de um enxadrista hábil e a frieza de um soldado que conhece a fundo a ciência da guerra, para a qual foi formado.
Reportemo-nos a 1990. Ao ‘liderar’ a reação ao golpe contra Gorbatchev perpetrado pela linha dura soviética, o alcoólatra Boris Yeltsin, declaradamente fantoche ocidental, em momento algum encontrou qualquer esboço de gesto político do então supremo líder ‘comunista’. Gorbatchev arrumou as malas e se mudou, com o dinheiro do Prêmio Nobel da Paz, para Londres, onde criou uma fundação com seu nome. E sua responsabilidade histórica com a ‘Perestroica’, com a Rússia ou com seus ideais ‘socialistas’? Meu saudoso e sábio Pai dissera ao querido Professor Gilberto, no início da década de 1980, que não gostava desse líder soviético, pois agia como inimigo dos aliados históricos da União Soviética (referia-se aos líderes árabes inspirados no memorável líder Gamal Abdel Nasser), e por isso, para meu Pai, Gorbatchev não passava de um sionista. Na época eu me surpreendi com aquela revelação, mas os anos mostraram que meu velho Pai não estava errado, e eis que as contas mal feitas por Gorbatchev estão tendo que ser fechadas por Putin, como a História vem mostrando.
A farsa ‘Comunidade dos Estados Independentes’, como acabou denominada a sucedânea da ex-União Soviética, foi um engodo para facilitar o desmonte do Pacto de Varsóvia e a expansão ardilosa da OTAN, que praticamente cercou com bases as fronteiras ocidentais da Rússia. O tiro de misericórdia contra Putin foi dado em 2014, quando da deposição do presidente Viktor Ianukovytch, durante a ‘revolução laranja’ (sic), sempre ‘em nome da democracia’. O primeiro gesto de advertência de Putin foi a anexação da Crimeia, região russa doada por Vladimir Lênin para a Ucrânia nos primeiros anos da União Soviética. Desde então, o governo da Rússia vem tentando assegurar sua sobrevivência geopolítica e econômica com a OTAN e os Estados Unidos (razão da aproximação com Trump), mas a postura imperial de Biden e dos falcões do Pentágono o levaram a essa decisão extrema, que não é irreversível (apesar das perdas humanas e materiais), caso houvesse um sinal de Biden e anuência do Pentágono.
A propósito, para provar viés pacifista engajado nos noticiários dos últimos dias, por que a Globo não questionou as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, quando se manifestou como profissional militar e disse que a maneira mais efetiva de parar Putin é responder com ações militares, em vez das, para ele, desacreditadas e pouco eficientes sanções econômicas? Pela simples razão de que havia certa coincidência com a postura de diversas potências ocidentais, inclusive com a OTAN.
Mourão respondeu como militar, mas se esqueceu de que seu cargo de vice-presidente da República requer outro protocolo, em sintonia com o Itamaraty e seu qualificado pessoal de carreira, que não segue partidos ou ideologias. Nesse sentido, a chancelaria deu mais uma demonstração de sensatez histórica ao manter posição coerente com a doutrina da diplomacia brasileira: nem caudatária à postura hegemônica dos Estados Unidos, nem condescendente com a violação de princípios norteadores da Carta das Nações Unidas, aliás, incessantemente atropelada pelas potências ao longo das últimas décadas — sobretudo pelos Estados Unidos, como na invasão e deposição do governo do Iraque no início da década de 2000; na intervenção sanguinária na Síria, Líbia, Iêmen e Palestina, e ingerência ardilosa no caso recente do Brasil, Bolívia, Honduras e Paraguai, só para dizer de alguns episódios deploráveis.
*Ahmad Schabib Hany