Comemora-se decisão do STF que, por unanimidade, pulverizou a interpretação castrense (que falava para além do texto) do malfadado art. 142 da Constituição Cidadã do Dr. Ulisses, redigido pelo senador Fernando Henrique Cardoso, embora ditado pelo general Leônidas Pires Gonçalves, bedel da constituinte, cumprindo com rigor o dever que o castro se auto-atribuíra, de reduzir a termos aceitáveis pelos fardados as aspirações políticas e sociais “mais avançadas” dos constituintes de 1988, que chegavam a Brasília embalados pelas bandeiras progressistas da longa luta contra o regime de 1º de abril de 1964. Já nos havíamos libertado da ditadura tout court, mas persistia a supervisão política da caserna no novo regime, como parte do acordo que permitira a anistia capenga, a implosão do colégio eleitoral, a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney. Assim tinha início o governo da Nova República, no qual se projetava o regime decaído, mas não derrotado, tanto que pudera ditar as condições de sua retirada de cena, “lenta e gradual”, processo continuado que parece não ter fim, como sugerem o patrocínio castrense da ascensão política e do regime Bolsonaro, a intentona frustrada de 8 de janeiro de 2023 e o comando da Defesa no governo Lula.
Havia, porém, o que celebrar, em 1985 e em 1988, e o ganho essencial terá sido a convocação da constituinte, após os infames Atos Institucionais e a Carta de 1967, outorgada pela ditadura. Uma constituinte sem poder originário, é verdade; limitada, condicionada, apenas consentida, mas, ao fim e ao cabo, autorizada a promover a reorganização política do país, transitando do autoritarismo larvar para um misto de aspirações que conjugavam o sonho da recuperação da liberdade perdida com a utopia da erradicação da pobreza, jamais permitida pela classe dominante.
O outro lado da democracia, conquistada mediante tratativas entre o poder real e a expectativa de poder, era a formalização da tutela dos fardados sobre a ordem civil (uma narrativa que nasce com a República), mediante a incorporação, no regramento constitucional negociado, daquele dispositivo que condenaria a República a sobreviver, insegura, sob o guante da espada de Dâmocles, a permanente ameaça de intervenção militar para garantir “a lei e a ordem”, ou seja, o statu quo, a imobilidade social. É a história do art. 142 da Constituição, dispositivo que, a rigor, nada acrescentava ao ordenamento jurídico, pois a vontade das forças independe do texto constitucional para efetivar-se, como ensina a história dos últimos 135 anos, desde os golpes fundadores de Deodoro e Floriano à intentona do ano passado.
O golpe de Estado é a força que não pode ser contida pela ordem legal. Tratam-se de entidades em conflito. Não cuida, pois, de sua autorização, nem os militares a pediam com a fabricação do art. 142. O grave não era, nem é, o próprio texto enxertado (que, por sinal, foi conservado pelo STF), mas, a partir dele, a interpretação capiciosa da caserna e dos juristas de japona, lendo o texto do constituinte de 1988 como concedente de um certo “poder moderador” de que os militares se dizem naturalmente titulares.
Primeiro, o castro abraçou a ideia de construir um país digno de si mesmo, isto é, moderno como ele se julgava. Para funcionar, o país tinha de mudar, e essa mudança era ditada pela visão que a caserna alimentava de modernidade, desapartada do progresso social. Na sequência, os fardados, regressando dos palcos da Itália, seguindo cursinhos nas escolas de formação de oficiais mantidos pelos EUA para adestrar os oficiais das nações do capitalismo periférico, tomou partido na Guerra Fria, e renunciou a qualquer sonho de soberania nacional. Uma conquista dos engalanados que muito incomodava a república, assim impedida de ser, caminhar com suas próprias pernas e segundo sua própria existência, pois agredida pela presença de um colonial poder moderador, ao fim e ao cabo uma servidão dentre tantas quantas avançavam sobre os direitos da cidadania.
Mais forte do que qualquer regra escrita, a tutela é doutrina que remonta ao Império. O 142 (hoje juridicamente esvaziado sem haver sido, antes, revogado) passou a ameaçar, mais e mais, pela interpretação emprestada. O poder moderador arguido pela caserna de há muito fôra reconhecido e sancionado pelo processo histórico, pela sua efetividade, derivada da aceitação nacional de suas seguidas intervenções na vida política e institucional.
O golpe de 1964 não se efetivou por meio dos atos institucionais: estes é que derivaram da voz dos tanques, a fonte do direito da ditadura. Tratava-se, em 1988, de engalanar o poder exorbitante das fileiras com a fantasia da legitimidade de um quarto poder, o poder armado e porque armado auto-constituído, imperando sobre os três únicos poderes (executivo, legislativo e judiciário) conhecidos pelo sistema republicano. De fato, o art. 142 sempre foi apenas isso: uma tentativa de estabelecer como regra constitucional condições permissivas do exercício fático da tutela militar sobre os demais poderes, no limite da legalização do golpe de Estado. Legalização de resto impossível, pois a natureza insanável do golpe de Estado é a violência legal.
O fato objetivo é este: juridicamente, o poder moderador foi revogado (mais precisamente, foi dado como inexistente) sem que o Supremo tivesse alterado o texto do art. 142; para tanto limitou-se a negar interpretação vulgar e estamental. Mas, evidentemente, não nos livrou de futuras intervenções militares, sob tais ou quais arguições. Estas poderão amanhã ser frustradas dependendo do socorro do processo social.
Há que aplaudir ação do STF, a quem já devíamos a resistência à intentona de janeiro de 2023, e a quem devemos o esforço por julgar e condenar os golpistas, muitos militares de alto coturno, useiros e vezeiros de crimes políticos, e sempre protegidos pela impunidade que abraça os enfileirados. Mas é de lamentar a inanição social, a anomia que paralisa o movimento popular.
Um comentarista desprevenido revelou, em texto recente, seu desencanto com a corrigenda interpretativa da alta corte, ao descobrir que o simples esvaziamento do art.142 não nos livraria, amanhã, de um golpe de Estado. De igual, não cuidou o articulista que a simples menção constitucional não era suficiente para a tutela. Esta era alimentada pelo papel desempenhado no país pelos fardados; da mesma forma, a tutela militar sobre o poder civil não cessará por obra e graça do esvaziamento do indigno 142, mas, tão-só, como consequência do eventual progresso da vida social: a tutela e o golpismo serão evitados na medida em que se organize e fortaleça o poder popular.
O que poderá impedir a curatela militar e eventuais intervenções no processo político é, só e tão só, a organização dos movimentos sociais, um desafio que se oferece à conjuntura, quando a história do presente registra o esvaziamento dos partidos e do movimento social.
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A agressão ao deputado Glauber Braga – Na última semana, o deputado Glauber Braga – um dos mais qualificados e destacados parlamentares brasileiros – foi agredido em plena Câmara federal, e com ele foi agredida a instituição legislativa, o grande fórum da democracia brasileira, ameaçada política e fisicamente pela truculência de segmentos os mais atrasados da direita patológica. As práticas são as de sempre, e copiam exemplos do nazifascismo, como a Juventude Hitlerista de triste memória. As ameaças e as agressões morais e físicas, certamente patrocinadas por parlamentares, são fabricadas na falsa suposição de que terminarão por intimidar o pensamento e a ação da esquerda. Atrás de si há a conivência militante de um jagunço de gravata: o presidente da Câmara deverá ser chamado pelas lideranças dos partidos democráticos para cumprir com seu dever de ofício de assegurar o livre exercício de mandato popular, o que está sendo negado ao deputado Glauber Braga.
Estou com Glauber – “Estou com Glauber e seu brio. Como pode alguém que não é parlamentar entrar no Parlamento, fazer provocações, dizer obscenidades? Não existe o vale-tudo. Tudo tem limites. Glauber e sua esposa Sâmia são denodados defensores da democracia. Vale mantê-los no Parlamento.” (Leonardo Boff)
Ainda o sionismo – Os grandes veículos de comunicação brasileiros, que mais que jornalismo têm se prestado a fazer assessoria de imprensa para Tel Aviv na cobertura do massacre que chamam de “conflito”, não gostaram da nota do governo brasileiro sobre a resposta do Irã ao ataque sionista à sua embaixada em Damasco. Reclama “não havermos condenado o agressor”. Mas o agressor é o protetorado de Israel!
Em defesa da liberdade – Toda a solidariedade ao repórter André Barrocal, cuja lucidez, e cuja coragem honram o jornalismo investigativo.
Ainda a imprensa – Quando a imprensa brasileira vai pedir desculpas ao país pelo seu engajamento na farsa da Lava Jato?
Loas ao atraso – O envilecido Estadão louva o fato “de a Embraer importar quase todos os componentes de seus aviões”. O tempo passa, e os Mesquitas continuam plantadores de café.
* Com a colaboração de Pedro Amaral