Narciso acha feio o que não é espelho, diria Caetano Veloso. Nos consultórios, ouvimos pessoas sofrendo por ter um corpo que transpira, se cansa, tem espinhas e fraqueja, um corpo que perece e parece radicalmente diverso das infinitas cópias. Teremos nos desacostumado aos rostos vivos com ângulos nem sempre belos ou felizes, mas vivos? Podemos pensar que o único filtro do corpo vivo é o da ilusão, da fantasia, recobrindo de desejo como um véu velando nossas fragilidades e medos.
A internet proporciona a disseminação de ideias e imagens em uma velocidade cada vez maior. Embora não esteja disponível para a maior parte da população mundial, a web é uma poderosa ferramenta de comunicação e aprendizagem para a humanidade.
Abra-se uma rede social qualquer e encontraremos um fenômeno curioso de apagamento gradual das peculiaridades, ou seja, dá a impressão de que as pessoas têm buscado parecer milimetricamente iguais. Embora existam excelentes profissionais, alguns processos de harmonização facial se assemelham mais a algum tipo de formatação facial. E nunca basta!
Lembramos do icônico ‘bico de pato’ que fez uma multidão de moças esticar seus lábios ao infinito ajudadas por toda sorte de cosméticos para dar-lhes volume e por exercícios em que usavam copinhos de sucção chineses. Pode-se ir mais além com algum dos inúmeros preenchimentos labiais para um efeito mais duradouro. E, a todo instante, surgem novos desenhos de lábios considerados mais belos.
Por algum tempo houve uma tempestade de fotos nas quais meninas procuravam algo que havia caído no chão – e que nunca aparecia na imagem – ou seguiam alguma trilha de formigas imaginárias. E, nova moda, formando uma infinita repetição de poses iguais em lugares iguais e com pessoas se querendo iguais.
Filtros e tutoriais de imagem seguem rechaçando sempre as diferenças. A busca por um ideal de beleza não é novo, assim como não são novas as rupturas provocadas pelos modismos. A novidade talvez seja o humano, com sua imagem especular, exposto em rede e os múltiplos recursos tecnológicos que possibilitam ter bocas, narizes, rostos parecidos. O que acontece nessa repetição infinita de querer caber naquilo que pensamos que o outro deseja de nós? Aqui, tanto Freud como Lacan teriam muitíssimo a contribuir, mas faremos apenas uma brevíssima reflexão.
A sensação de pertencimento é apaziguadora para o humano! Entretanto, para ser reconhecido por um grupo qualquer, são necessários rituais específicos que exibam as semelhanças e, simultaneamente, ocultem as diferenças. Sob o novo filtro, sob a intervenção estética ou sob a maquiagem, esse é o acordo necessário.
O mercado produz necessidades com o objetivo de vender saciedade, e os corpos viram objetos, assim como roupas, carros e perfumes. Um jovem pode sofrer indefinidamente por conta da imagem corporal que jamais se encaixará nas promessas das fotos retocadas tecnologicamente. A infelicidade ganha nome, é precificada, e recebe uma promessa de fim quando a moça passa a querer ‘fazer a boca’ de determinada celebridade ou se deseja alinhar o nariz. A falta constitutiva, porém, seguirá deslizando numa angústia infinita. Por fim, para nossa alegria ou tristeza, somos únicos. Cabe a cada um viver sua própria diferença do jeito que puder.
(*) Com formação e mestrado em psicologia pela UFRJ, Sandra Araujo Hott é psicanalista, professora e supervisora clínica. Sandra tem 25 anos de experiência clínica e mais de 20 anos como professora e supervisora.