Elis Regina, embaixadora da Música Popular Brasileira entre as décadas de 1960 e 1980, quando teve interrompida a sua Vida de forma trágica, cantou verdadeiros hinos (e, claro, reptos às nossas elites emboloradas), contemporâneos até hoje, quarenta e seis anos depois. Entre os vários com os quais generosamente nos advertiu, divertiu e embalou nossos sonhos e esperanças juvenis, temos o eternamente contemporâneo “Querellas do Brasil”, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc (que mais tarde, em parceria com o igualmente icônico João Bosco, nos presentearia com “O bêbado e o equilibrista”, hino à liberdade e à democracia, sempre na voz ímpar da eterna e terna Elis Regina).
Estávamos no primeiro semestre de 1978, e graças ao Amigo Juvenal Ávila de Oliveira os ouvintes da cosmopolita Corumbá da década de 1970 eram agraciados com a qualidade fonográfica da benfazeja e irreverente MPB das utopias e alegorias. Acabara de ingressar ao curso de Letras do saudoso CPC/UEMT (o extinto Centro Pedagógico de Corumbá da Universidade Estadual de Mato Grosso) e compartilhava com saudosos Amigos como Jorge Ocampo Claros (eternizado em fins de abril de 2021 na Bolívia de nossos cantos e encantos) essas e outras canções, entre elas de Benjo Cruz, Mercedes Sosa e Horacio Guarany, por meio das democráticas fitas cassete de áudio.
“Querellas do Brasil” está mais contemporânea que nunca: “O Brazil não conhece o Brasil / O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil / Do Brasil S.O.S. ao Brasil.” Em pleno século XXI, um golpe cínico com cara de ‘patriota’ canalha e, não satisfeitos, uma guinada ao fascismo mais miserável possível, com o panaca-títere banda suja inominável. E agora seus vermes plantados nas instituições, sobretudo, na Câmara Federal, Senado da República e Banco do Brasil, todos maledicentes. É pouco, ou, caro/a leitor/a, quer mais? Ah, sim! A mídia corporativa, agora encabeçada pelo Estadão, em cínico conchavo com a Globo, a Folha e o espólio da Abril. Serviram ao golpe de 1964, ao de 2016, tentaram em 2023 (e se deram mal!), mas não desistem, pois seu DNA de escorpião teima, querem a qualquer custo apear Lula, ou ao menos transformá-lo em ‘rainha da Inglaterra’.
“O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil / Tapir, jabuti / Liana, alamanda, ali, alaúde / Piau, ururau, aki, ataúde / Piá-carioca, porecramecrã / Jobim akarore, Jobim-açu / Uô, uô, uô // Pererê, camará, tororó, olerê / Piriri, ratatá, karatê, olará / Pererê, camará, tororó, olerê / Piriri, ratatá, karatê, olará / / O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil // Jereba, saci / Caandrades, cunhãs, ariranha, aranha / Sertões, Guimarães, bachianas, águas / Imarionaíma, ariraribóia / Na aura das mãos de Jobim-açu / Uô, uô, uô // Jererê, sarará, cururu, olerê / Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará / Jererê, sarará, cururu, olerê // Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará // Do Brasil, SOS ao Brasil / Do Brasil, SOS ao Brasil / Do Brasil, SOS ao Brasil // Tinhorão, urutu, sucuri / Ujobim, sabiá, bem-te-vi / Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê / Madureira, Olaria e Bangu, olará / Cascadura, Água Santa, Acari, olerê / Ipanema e Nova Iguaçu, olará // Do Brasil, SOS ao Brasil / Do Brasil, SOS ao Brasil.”
E providencialmente os queridos Amigos Alle Yunes e Armando Lacerda, em momentos diferentes, me fazem chegar a constatação disso tudo. Na revista NovaFase, por sinal bem impressa em papel couchê de fazer inveja à Abril dos melhores anos, gentilmente entregue pelo querido Alle Yunes, temos a constatação que o que aqui empresários e burocratas desinformados chamam de RILA para paranaenses, catarinenses e gaúchos isso é, numa paródia ao Canal do Panamá, o que eles orgulhosamente bradam como ‘Canal do Paraná’, do Atlântico ao Pacífico, na Região Sul do Brasil, usando o atual presidente Santiago Peña, do Paraguai, como ‘barriga de aluguel’, até porque o Paraguai é um país, como a Bolívia, mediterrâneo, isto é, sem saída aos oceanos Atlântico ou Pacífico. O querido Armando, por sua vez, afronta corajosamente o establishment campo-grandense quando demonstra que deixar ruir a real e histórica comunicação rodoferroviária Bauru – Santa Cruz de la Sierra – Iquique é mais que ignorar a própria gênese de Mato Grosso do Sul e de sua capital, Campo Grande, que graças ao trem se tornou minimamente citadina [porque, desculpem-me Amigos campo-grandenses, mas a velha currutela de passagem de potros e bezerros, como revelou o querido Amigo Sérgio Cruz em suas diferentes pesquisas, a NovaCap nunca, nunca foi cosmopolita!]. Em outras palavras, esses senhores, mais uma vez motivados pela ousadia e distantes do real, do histórico, do concreto, insistem em dar não tiro no pé, mas na própria cabeça ao desperdiçar o que já existe para ligar o nada a lugar nenhum.
Herança da [mal]ditadura, Mato Grosso do Sul tem em toda a sua estrutura de Estado uns ‘luas pretas’ que, além de desconhecer a História do Brasil e de Mato Grosso [a mesma que de Mato Grosso do Sul antes de 1º de janeiro de 1979], teimam reinventar a ‘roda’ [ou, melhor, a história], como que eles tivessem neurônios suficientes para uma proeza dessas, e nós, reles mortais que habitamos esta unidade da federação desde antes do regime de 1964, precisamos ter que fingir que acreditamos em suas pieguices cínicas e inverossímeis. O que dizer, então, quando a comarca de Corumbá faz seu sesquicentenário e a assessoria de comunicação do Poder Judiciário estadual deixa saírem pérolas como ‘Vila Mariana’ por Vila Maria, Cáceres (antes, São Luiz de Cáceres) e, pior, conseguiram errar o nome de nascimento do Barão de Vila Maria, Joaquim Eugênio Gomes da Silva, o Nheco, fundador da fazenda Firme e da Nhecolândia, filho de padre nascido na Fazenda Jacobina e enviado para esta região de fronteira para fundar sua propriedade, segundo o saudoso escritor e memorialista, o querido Amigo Augusto César Proença, seu tetraneto, em “Pantanal — Gente, tradição e história”, publicado pela Editora UFMS em 1993.
Um velho Amigo historiador há décadas vem colecionando as, digamos, ‘derrapadas’ dessa gente que caiu de paraquedas no sul de Mato Grosso, pouco antes da criação do estado de Campo Grande, como consta dos jornais de então. E só mudou o nome pela rejeição total e imediata da maioria dos moradores do território sul-mato-grossense. Pegou tão mal, que o então porta-voz do ditador de plantão Ernesto Geisel, à noitinha do mesmo dia em que foi anunciado mais esse casuísmo para que a Arena, partido de sustentação do regime, ganhasse três senadores e cinco de seis deputados federais situacionistas — em 11 de outubro de 1977 –, esclareceu, bastante atrapalhado, que o nome seria objeto de debate no dia seguinte com toda a bancada federal do estado de Mato Grosso.
Ainda que não morra de amores pelo sinistro e sanguinário Filinto Müller, homem forte de duas ditaduras — do Estado Novo e do regime de 1964 — e que curiosamente faleceu em acidente aéreo no dia de seu aniversário de 73 anos, véspera da sucessão do facínora que governou com mão de ferro e que dispendeu fortuna para aparentar uma popularidade artificial, à moda fascista, de triste memória, Emílio Garrastazu Médici, graças a ele Mato Grosso ‘demorara’ a ser esquartejado.
A saída de cena do cuiabano mais poderoso da história não só atrapalhou a linha-dura, que perdeu o trono, como desarticulou o projeto de fascistização institucional em curso. Mais ainda, sem ele, Mato Grosso foi retalhado, acintosa e despudoradamente. José Fragelli, corumbaense que contou com o apoio de Müller para ser o primeiro governador indicado, esqueceu-se dos laços históricos que sempre uniram Corumbá a Cuiabá, e foi conivente com esse projeto de criação de cabides de emprego em Campo Grande e depauperação paulatina do Pantanal e, sobretudo, Corumbá de todas as esperanças e culturas.
Mas façamos justiça, pois Fragelli, quando aderiu, por vingança pessoal contra Pedrossian, é verdade, ao PMDB dos Irmãos Plínio e Wilson Barbosa Martins e de Ulysses Guimarães, resgatou sua dignidade histórica na presidência do Senado da República (ao apoiar as articulações de Ulysses na improvisada e trágica sucessão de Figueiredo a José Sarney em 15 de março de 1985) e, em âmbito estadual, ao apoiar incondicionalmente a ação popular contra a entrega, chamada de ‘privatização’, da Urucum Mineração à Vale, em curioso leilão na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, pelo Banco Vetor, de triste memória. Esses fatos tornam Fragelli um valoroso e digno homem público, a despeito de suas derrapadas durante o tempo em que apoiou e se beneficiou do regime de 1964, à exceção da criação da Metamat, ao final de sua gestão como governador, para dar à sua cidade-natal o direito de uso legítimo de concessão de lavra da maior reserva de manganês e a segunda de ferro.
Mas Mato Grosso do Sul acabou virando claque dos delírios nem sempre bem intencionados de Pedro Pedrossian e suas obras faraônicas [daí porque ‘faraó de Miranda’]. Depois de guindado ao Palácio Alencastro [após a gestão Fragelli mudado para o Paiaguás], graças à votação de DNA trabalhista de Corumbá em 1965, Pedrossian pagou com ingratidão à sua alardeada ‘menina dos olhos’ (à que o então deputado oposicionista Cecílio de Jesus Gaeta chamou de ‘remelenta’, pois ficara ao léu sob suas promessas). E a pior delas não foi o descumprimento de promessas não realizadas, mas a negociata cínica e acintosa da venda da Urucum Mineração nos derradeiros dias de seu segundo mandato em MS, contra a qual, aliás, os Deputados (maiúsculas, por favor!) Armando Anache e Marilene Coimbra, de sua base parlamentar, se manifestaram e sofreram retaliação (Anache, que seria indicado para o Tribunal de Contas do Estado, foi desconvidado, e Marilene Coimbra, também histórica pedrossianista por conta do marido, Albino Coimbra Filho, acabou como Anache no ostracismo político, e não reeleitos).
Quantos empregos de alto nível Corumbá perdeu nesse ato lesivo aos interesses do Estado brasileiro? Centenas, além da perda de competitividade da saudosa UMSA, pioneira nas vendas aos países da ‘cortina de ferro’ e da ‘rota da seda’, Europa oriental e China, para fazermos justiça com a maior estatal da história de Corumbá, contra a qual politiquinhos de meia pataca, então em voga, se insurgiram, e hoje estão no ostracismo da história.
*Ahmad Schabib Hany