O ‘eu-poético’ e o coletivo no novo livro de Marcos Estevão

Capa do novo livro de Marcos Estevão – Foto: Divulgação

Não é comum iniciar uma análise crítica pelo título da obra, mas no caso da Távola de Palavras e Silêncios de Marcos Estevão dos Santos Moura esta digressão é uma quase imposição, pois não há como deixar de lembrar do lendário Rei Artur, seus heroicos cavaleiros da Távola Redonda, esta, símbolo da relação de igualdade e da ausência de distinção de qualquer natureza.

O autor, ao escolher o milenar vocábulo, faz assim um convite aos leitores para que se juntem a ele e se sentem à mesa da Poesia a fim de se deliciarem com as estruturas e as pausas poéticas de singular virtuosismo de um dos mais esclarecidos e promissores poetas do nosso estado.

Desde o título às configurações do eu e do mundo e às reflexões filosóficas, a poesia de Marcos Estevão exprime os espaços e a coloração do contemporâneo resgatados em face da perda da alma humana frente às violências e aos horrores sociais.

Argumentos despedaçados

Por pontos duvidosos de vista

A desumanidade trafega

Trôpega Frente aos seus temores

O destino é clandestino

Vivemos nossos clãs

De cada dia”  –  in Desumanidade

Essa abordagem expressa os encontros e desencontros entre o Ser e o Universo, cujo timbre poético é fruto de uma fluidez sintática que caracteriza a linguagem centrada na nomeação da metalinguagem e das inusitadas metáforas além do canto das situações existenciais.

“…Linhas são versos, são reversos, cheiro e cor

Se a poesia traz consigo minha dor

Traz, também, o sumo gáudio de meu cerne.”  – in Com a palavra, a Poesia

Os poemas, dispostos em sequência temática, vão além de abstrações convencionais. Marcos Estevão conhece a arte do desenho poético, as forças de atração e repulsa vocabular, as palavras tomadas em sua pureza, amplitude e segredo – em suas potencialidades primeiras.

“Todo poeta é um artista” diz Paulo Mendes Campos; em Marcos Estevão a intercomunicação poeta-artista vale pela visão em profundidade de uma certa melancolia contemplativa que se nota ao longo da produção poética, assim como uma diáfana e triste fugacidade de lirismo comedido e quase tímido.

“…Deixo a porta entreaberta

E distribuo meu corpo Entre a casa e a rua,

Um pé dentro e outro fora,

Talvez metade de mim

Diga o que está certo.”  – in Fatos e desfatos

Ressalta no conjunto de poemas uma combinação de denúncia existencial do eu e do coletivo, e o autor explora as duas vertentes de modo bem específico em que o “…sentimento do tempo compele o eu lírico a figurar a simultaneidade dos múltiplos modos de existir da vida íntima e pública”, segundo Alfredo Bosi em Céu, Inferno.

Nesse sentido, a obra Távola de Palavras e Silêncios faz pressentir a polifonia dos motivos e fatos com os quais o poeta lida no cotidiano de sua profissão – médico – e de sua vida familiar. O eco das vozes, no entanto, não obscurece o processo de escrita diante da sua alma poética fluída e aberta. As temáticas traduzidas nos poemas evocam as sinestesias que ora colorem a crueza e a compassividade da existência.

“…Com os meus passos

Que seguem incertos

Passos cegos, à deriva

Devorados pelas escolhas

Passos descalços

Estacionados nas bifurcações

Passos e terra

Vidas e mortes .”  – in Escolhas

Marcos Estevão incorpora seus poemas, sem medo, e deixa a mensagem de que a Poesia é o “remédio” mais salutar para os males da alma.

“…Preciso alcançar a brisa

Que me foge

E esperar que a vida

Tenha o cheiro

Do amanhã.”    – in Esperança

Assumir o fazer poético é uma batalha diária, desafiadora, e mesmo sabendo-se impotente diante do enigma existencial, o autor tenta atribuir um sentido ao cosmo que lhe possibilite viver da melhor maneira possível.

Tal posicionamente faz lembrar E.E. Cummings, poeta norte-americano:

“Não ser ninguém além de si num mundo que dia e noite se esforça para transformá-lo em uma pessoa igual a todas as outras significa entrar na mais dura das batalhas que um ser humano pode enfrentar, e nunca deixar de lutar.”

As vivências trabalhadas como motivos dos poemas são efeitos de um processo do pensamento criador e dinâmico de Marcos Estevão e esta marca poética confere à sua poesia um sentimento universalizante, uma amplitude de significação de extrema singularidade.

As temáticas voltadas para o meio ambiente ou para os fatos familiares relacionados aos momentos especiais da vida, resultantes do evidente lirismo, dão o toque de esperança, alegria; dão a noção da riqueza de gestos simples, da sensação de que o Ser é o construtor de sua história e o autor as insere no eixo poético sobre o qual estabelece uma reflexão apaixonante, a um estado de admiração jubilosa.

E no dia a dia

Vive a plenitude do trivial

E contenta-se

Com cada raiar de sol.”  – in O Simples

Os poemas da seção Pantanal, As águas, Homenagens são todos referentes a esse viés da obra. Já Horas Vagas reflete poemas sobre a dupla condição da alma humana: frágil e dependente, quando perplexos e boquiabertos, os homens se conscientizam da necessidade de resgatar a paixão pela existência, banhados por uma maré suave que os conduza a uma louvação profunda pelo viver.

Távola de Palavras e Silêncios permute conferir o aspecto sutil de Marcos Estevão, mesmo quando canta a amargura dos fatos ou quando une sua voz à daqueles que se descobrem nas entrelinhas de seus versos.  

“…Somos diferentemente iguais

Talvez normais

Ou anormais

Ou simplesmente

Nós somos mais.”  – In Iguais e Diferentes

Segundo M. Bakhtin, todo texto é composto por elementos exteriores e comuns a outros textos que dialogam sem quem um se sobreponha ao outro; tanto no aspecto do sentido quando do uso dos vocábulos e a palavra poética é vista essencialmente como multiplicidade de significados. Às ideias de M. Bakhtin, junta-se Julia Kristeva quando diz que os textos só existem porque absorvem e transformam outros textos. Esse processo construtivo de absorção e transformação é a intertextualidade inserida cuidadosamente pelo autor em vários poemas.

Marcos Estevão dos Santos Moura mais uma vez brinda a sociedade sul-mato-grandense com uma obra de qualidade poética inquestionável. Com perspicácia e lucidez, o autor apresenta um fazer poético em que a desautomatização  da linguagem, a percepção pessoal/ coletiva do mundo provocam no leitor não um estranhamento, mas um sentimento de compartilhamento, visto que as temáticas são tratadas em aspecto de universalidade e atemporalidade.

Lembrando Carlos Drummond, Marcos Estevão não só luta com as palavras, mas é um apaixonado por elas, mesmo quando a tristeza o alcança ou quando a alegria o conduz por caminhos que só ao poeta é permitido trilhar.

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*A autora Ana Maria Bernardelli é poeta, ensaísta, escritora e musicista. Recentemente, concorreu e foi eleita para a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Professora especialista em Literatura Brasileira e Portuguesa, há quatro décadas leciona em cursos preparatórios para concursos públicos e vestibulares. Dentre suas obras, destaca-se o livro de poemas: Na Trilha das Formigas (Ed. Life, 2020). Natural do estado de São Paulo, reside em Campo Grande-MS.

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