Os EUA e o mundo sob sua regência

“Roma desabara, afinal, ao peso de tanta grandeza e de tanto crime” (Afonso Arinos de Melo Franco, Amor a Roma)

No teatro elisabetano, o coro era figura sem presença na trama, inventada para anunciar ou esclarecer passagens futuras na tragédia ou no drama. Com a tosca aparição nas telas da CNN, no último 15 de junho, os atuais postulantes da Casa Branca ilustraram a decadência política da sociedade estadunidense, da qual são fruto legítimo, assim como foi produto inevitável o lento e previsível declínio do império romano, ensandecido pela loucura do poder supremo e universal.

Qualquer que seja o resultado das eleições dos EUA no próximo 5 de novembro, o constrangedor debate (pelo que anunciou) já pode se candidatar como um dos fatos históricos mais relevantes da década. Porque, na sua comédia e na sua tragédia, a cena bufa de atores medíocres mais do que revelar, em imagem de corpo inteiro, o declínio do império, projetou o inevitável fim de sua hegemonia, que não tem data para tomar forma, tanto quanto não se sabe o preço que ainda cobrará à humanidade, em sua marcha presente para um “fascismo de outro tipo”, que a imprensa e a academia batizaram de extrema-direita.

Sendo o epicentro, os EUA não encerram, porém, o universo das nuvens cinzas. A história presente nos acena com um processo político cujas pinças se espalham pelo mundo e ameaçam engolfar a Europa, fazendo-nos rever os anos 20-30 do século passado –desta vez, porém, com um elemento distintivo crucial: se naquele então os EUA cumpriam o papel militar e ideológico de esteio democrático, hoje, mil vezes mais poderosos, são a fortaleza da reversão protofascista, que, na loucura do dever missionário auto-atribuído, procuram levar ao mundo inteiro, porque seu código de valores mudou nas pegadas do capitalismo financeiro monopolista.

O débil presidente de direita e o meliante que o desafia carecem de relevância. Desgraçadamente, Trump, tanto quanto Biden, ou quem venha substituí-lo na campanha mal iniciada, não constituem um ponto fora da curva na história política do império norte-americano.

A política, na parte do mundo que nos toca, regida pelos mesmos astros, marcha na toada dos tempos. Após o suicídio já quase longínquo da URSS, seguem-se a derrocada da socialdemocracia e o avanço continuado ora da direita, ora da extrema-direita. O sinal mais trágico já nos foi enviado pela Itália, e pode ser repetido por franceses no próximo domingo, como pelos alemães no ano que vem. O Fratelli d’Italia alçado ao poder pelo voto democrático – como antes foram Mussolini e Hitler, como foram recentemente as caricaturas Bolsonaro e Milei –-, colocou na chefia do governo a neofascista Giorgia Meloni. Na Alemanha, a socialdemocracia desmorona enquanto crescem os grupos nazistas (que também já proliferam por aqui). Lá, até os verdes são de direita. As eleições gerais para  renovação do Bundestag devem ocorrer em 2025, e além da derrota do primeiro-ministro  Olaf Scholz, e de seu SPD, que nas pesquisas recentes ocupa o terceiro lugar nas referências dos eleitores, é previsível a ascensão de uma direita patologicamente intoxicada pelo chorume nazista que nos levou ao que todos sabem, porque falou à alma profunda do pangermanismo, como o Duce sintetizou, com o fascismo, o sonho italiano de reviver as glórias de um império perdido nas brumas da história.
As eleições norte-americanas não alterarão o processo histórico: navegam em sua vaga. O governo de Meloni, que acompanha as diretrizes dos EUA na OTAN, não tem término aprazado. O movimento está na França, com o fim já proclamado da hegemonia do Em Marche de Emmanuel Macron, que, todavia, permanecerá mais três anos habitando o Palais de l’Élysée, qualquer que seja o anúncio das eleições de domingo. É delas, portanto, que devemos tratar.

Como os astros e as pesquisas aparentemente cientificas anteciparam, o primeiro turno confirmou o avanço do ultradireitista Front National, de Marine Le Pen, mas sem assegurar-lhe a maioria absoluta no parlamento (faltaram-lhe preciosos nove votos). A prevista derrota das esquerdas (comunistas, socialistas, ecologistas, progressistas) todavia, não se deu. O desempenho eleitoral da Frente de Esquerda surpreendeu, colocando-a em segundo lugar, a cinco pontos de Le Pen. O grande derrotado, qualquer que seja o resultado de domingo, é Macron. Esta é a única unanimidade entre os analistas e Marine Le Pen, anunciada candidata à sua sucessão, insinua a conveniência da renúncia do presidente em face de eventual derrota acachapante. Inábil jogador de xadrez, embaralhou as pedras com a dissolução da Assembleia e a consequente convocação das eleições, na frustrada expectativa de repetir o lance usual nas táticas da direita: apresentar-se como a alternativa salvadora entre a ameaça dos extremos. No momento em que escrevo, o professor Marco Antônio Rodrigues Dias lembra a inutilidade de qualquer tentativa de antevisão do segundo turno, por absoluta ausência de segurança empírica. Valem tanto quanto a quiromancia. Ademais, por que tanta aflição se estamos já a um passo do pleito? Tratemos, pois, daquilo que, segundo nosso ponto de vista, parece hoje definido.

Deve ser tido como favas contadas o avanço da extrema-direita, e, seja nosso consolo, a sobrevivência da esquerda, desta feita se superando numa política de frente que interrompe o divisionismo de muitas eras, vencido no Brasil em 2022. Melhorou seu desempenho em face das últimas eleições. O medo, como se vê, pode ser bom conselheiro. Descartada a vitória do En Marche, a única alternativa será a coabitação – repetindo as experiências do socialista François Mitterrand (1986-1988) com a centro-direita de Jacques Chirac, e Chirac-Jospin (1997-2002) – trazendo à tona a quase certeza da instabilidade política que, partindo da França (que com a Alemanha constitui seu centro econômico-político hegemônico) pode atingir a Comunidade Europeia e mesmo a OTAN.

É preciso, porém, pôr de manifesto o distanciamento político daquelas passadas coabitações, compreendendo esquerda e centro-direita, com a expectativa do lamentável encontro da direita de Macron com a extrema direita protofascista. A querida Rosa Freire d’Aguiar lembra que a França da Liberté, Égalité, Fraternité é a mesma que a menos de oitenta anos foi governada por um primeiro-ministro fascista, Pierre Laval, isso na “República de Vichy” chefiada pelo Marechal Philippe Pétain, a serviço do exército alemão invasor. A humilhante derrota para a Alemanha é muitas vezes invocada para explicar a indigência moral. Mas o que dizer de hoje, quando boa parte dos franceses pode estar elegendo um novo Vichy?
Tímida aragem chega da Grã-Bretanha, com a confirmação da derrocada do Partido Conservador, após 14 anos de mando e desmandos. Mas o Partido Trabalhista que controlará a Câmara dos Comuns e nomeará o primeiro-ministro não guarda raízes com o Labour Party de Jaremy Corbyn. A política externa permanecerá intocável, e o novo governo se limitará a enfrentar as consequências da desastrada saída da Comunidade Europeia. O ex-império está tão doente quanto a família real, e permanecerá como província de sua ex-colônia.

Nosso continente vive seus abalos. O Brasil, graças ao carisma e ao sacrifício de Lula, conteve a continuidade da extrema-direita. Teve, porém, o PT, na campanha e no governo, de aliar-se a setores conservadores, e, minoritário, enfrenta a oposição ativa do mais reacionário Congresso de quantos conheceu a República. E, pela primeira vez, assistimos, em país flagrantemente dividido, uma extrema-direita organizada e mobilizada, enraizada em grandes setores populares, alimentada por setores da ordem econômica, apoio que se reflete na oposição que os grandes meios de comunicação movem contra o governo de centro-esquerda.

O Paraguai segue na estabilidade dos governos de direita. O Partido Colorado permanece no poder praticamente desde 1887. São desanimadoras as perspectivas do Peru e do Equador. Na Bolívia, vítima de guerra híbrida, o governo conseguiu conter mais uma tentativa de golpe militar. Mas a guerrilha inexplicada entre Evo Morales e Luís Arce poderá afastar a esquerda nas próximas eleições, além de constituir um desserviço para a educação política das massas. Há, contudo, o que comemorar, como as indicações de que a Frente Ampla de José Mujica pode voltar ao poder no Uruguai. O grande feito, de qualquer modo, é a eleição de Claudia Sheinbaum no México, com 60% dos votos e conquistando dois terços o Congresso.

Que esse panorama ajude a esquerda e as forças populares de um modo geral a compreenderem o desafio político-ideológico das nossas eleições municipais deste ano.

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Os tropeços da pequena política Em evento recente no Rio de Janeiro, a inauguração de um conjunto habitacional, o presidente Lula saudou Eduardo Paes como “o melhor prefeito que esse país já teve”. Uma inverdade e uma injustiça. Para citar poucos, Lula menosprezou as administrações paulistanas de seus correligionários Luiza Erundina (então no PT), Marta Suplicy e Fernando Haddad, com quem, aliás, estivera minutos antes.

Silêncio tonitruante  A louvável coragem exibida por Lula na defesa de Julian Assange, jornalista duramente perseguido pelo estado que se dizia paladino da liberdade de imprensa, bem como na denúncia do genocídio palestino (a que a “comunidade internacional” assiste perplexa e imóvel), é digna de aplauso e nos enche de orgulho. Em face dela, machuca os ouvidos o silêncio do nosso governo sobre o episódio da detenção e deportação – sumária – do professor palestino Muslim Abuumar e sua família, inclusive a esposa grávida de sete meses. Abuumar, os apoiadores de Lula e a sociedade como um todo merecem uma explicação.

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*Com a colaboração de Pedro Amaral

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