O número de mortes por covid-19 entre os povos indígenas cada vez é maior, mas a demora para colocar na prática o Plano Emergencial para proteger comunidades indígenas e outras populações tradicionais no Brasil continua demorando. Desde o dia em que o Senado aprovou o Plano, 16 de junho, até hoje, o número de indígenas falecidos passou de 287 para 756, ou seja, a quantidade de óbitos aumentou 163%, segundo dados de 30 de agosto, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). O atual presidente, Jair Bolsonaro, ratificou o projeto de lei 1142/2020 que aprovou o Plano Emergencial em 7 de julho. Entrou em vigor, no mesmo dia, mas até hoje nenhuma política foi implementada, entre outros motivos, porque Bolsonaro vetou 22 das medidas propostas.
“Para nossa surpresa, consternação e contestação foi o projeto que mais recebeu vetos no período do governo Bolsonaro, o que é uma forte sinalização de que existe uma política que contraria os dispositivos constitucionais que garantem aos povos indígenas um tratamento específico e diferenciado e que reconheça sua forma de organização social, que reconheça que é necessário o estado brasileiro adotar políticas específicas e adequadas aos povos indígenas”, declarou Joênia Wapichana em entrevista à Amazônia Real no final de julho.
Da mesma forma, Bolsonaro não demonstra entender a necessidade real de que este Plano Emergencial seja aplicado o quanto antes para poder salvar as vidas de uma parte da população que também está sob o guarda-chuva de proteção social do Governo. “As decisões de Bolsonaro demonstram publicamente a adoção de uma política anti-indígena”, expressou numa carta pública a APIB no momento da ratificação da lei com a veintena de vetos.
A negociação dos pontos vetados por Bolsonaro
“Vetar artigos que possibilitem a proteção à vida das pessoas é concorrer a atos que indicam que está deixando esse grupo ainda mais vulnerável”, adicionou Wapichana na mesma entrevista.
Embora Bolsonaro tenha se negado a aplicar 22 medidas do total de propostas do Plano Emergencial, numa recente votação em 19 de agosto, o Congresso Nacional aprovou a reinserção de 16 dos pontos vetados. Outros seis ficaram de fora definitivamente.
O bloqueio à medida de fornecimento de água potável por parte do Governo foi uns dos vetos governamentais mais criticados. “O governo veta o acesso à água potável com o argumento de que os indígenas têm rios para se abastecer. Se fossem rios que não tivessem invasores em suas terras, mas olha o caso dos Yanomami que estão gritando para que tirem os invasores de suas áreas com o garimpo contaminando as águas com mercúrio”, declarou Wapichana. No entanto, o Congresso conseguiu derrubar o veto e, agora, a Lei do Plano Emergencial obriga ao governo federal a garantir água potável a todos os povos indígenas. Apesar disso, ainda não se tem previsão de quando esta e outras medidas serão aplicadas.
“Foi importante a derrubada dos vetos, mas quando vai começar a implementar? Já temos (mais de) 700 óbitos, vai esperar mais 700 indígenas morrerem para implementar um plano?”, questiona Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB.
O STF pressiona o governo para que instale urgentemente barreiras sanitárias
Perante o apontamento de “omissão do governo federal no combate à Covid-19 entre os povos indígenas”, apresentada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 pela Apib junto com alguns partidos políticos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT), o ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a obrigação da União de aplicar medidas urgentes de contenção do avanço da covid-19 nas áreas indígenas. A resolução mais recente de Barroso, de 31 de agosto, reconheceu a urgência da execução do Plano de Barreiras Sanitárias para a proteção dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato apresentado pelo governo federal.
O Ministro determinou que na prioridade 1 da União (que é: Alto Rio Negro, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Enawenê-Nawê, Juma, Kaxinawá do Rio Humaitá, Mamoadate e Pirahã,) sejam incluídas as terras apresentadas pela APIB, CNJ e MPF: Vale do Javari, Yanomami, Uru Eu Wau Wau e Araribóia. O prazo para a implantação das Barreiras Sanitárias nessas terras é de um mês, o de setembro, o que inclui, segundo o ministro, o isolamento dos invasores.
Sobre a prioridade 2 da União, que é Vale do Javari e Yanomami, o ministro afirma que o prazo para a implantação das barreiras é outubro, porém, se elas foram para a prioridade 1, conforme o próprio ministro determinou, esse prazo deve ser setembro.
A proposta inicial do governo de instalação de barreiras sanitárias foi considerada como deficitária depois da análise de grupo de especialistas convidado pela APIB. Os analistas concluíram que o plano federal inicial era “extremamente deficitário e inconsistente”. Além do uso de terminologia e estudos inadequados, a proposta só incluía 30% das terras indígenas no Brasil, ou seja 163 das 537 T.I. reconhecidas, deixando mais de dois terços do total sem proteção.
Ainda, há contradições nas informações apresentadas pelo plano da União. Enquanto o documento afirma que existem 274 barreiras funcionando em terras indígenas e que 25 delas estão exclusivamente mantidas por agentes do governo, a APIB desmente as informações e afirma que a maioria de barreiras dependem integralmente dos próprios povos indígenas que garantem o isolamento deles da melhor forma que podem e sem ajuda do governo. “Há grave omissão do governo federal no combate à Covid-19 em meio aos povos indígenas, no atraso de suas respostas à pandemia e na escassez de recursos disponibilizados”, afirmou a APIB num relatório enviado ao ministro Barroso.
A presença de invasores ilegais nas terras, como garimpeiros, madeireiros ou grileiros, é um dos fatores de maior risco de contaminação para os povos indígenas que tentam permanecer isolados em face da covid-19. No entanto, o STF não determinou um prazo obrigatório para a saída dos invasores, tal e como os povos indígenas vem solicitando desde o começo da pandemia em março. Atualmente, tem indicios de presença de pessoas estranhas às comunidades nas terras indígenas Araribóia, Karipuna, Kayapó, Munduruku, Trincheira Bacajá, Uru-Eu-Wau-Wau e Yanomami, entre outras. À ameaça de contágio externo, que já tem sido demonstrado em povos como o Yanomami, soma-se o risco de aumento de crimes ambientais como resultado da atual cortina de fumaça provocada pelo foco de atenção na pandemia e pela impunidade permitida por algumas instituições e governos municipais, estatais e federal.
Além disso, a atual situação de descontrole da implementação de políticas de proteção social e ambiental afeta profundamente à garantia da vida dos povos indígenas em isolamento voluntário. Cercados pelo avanço de extratores ilegais de recursos, pelos incêndios e perante o desmonte da política de proteção aos povos indígenas isolados e em contato voluntário da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), estas populações podem se ver forçadas a entrar em contato com outros grupos sociais. O que implica um risco de contágio massivo de covid-19 numa população com um sistema imunitário muito divergente do restante da sociedade.
O Plano foi criado pelo movimento indigenista, o Governo de Bolsonaro até agora não definiu nenhuma política efetiva de proteção às populações tradicionais
É de responsabilidade de um governo democrático garantir a vida e os direitos de todas as pessoas que estão no território brasileiro, e para isso, lhe corresponde também identificar os riscos para a população e, na medida do possível, evitá-los. No entanto, e sem considerar a polêmica no plano inicial de barreiras do governo federal, a única contribuição de Bolsonaro com o Plano Emergencial de proteção de populações tradicionais frente à covid-19 tem sido vetos e obstáculos.
Durante a negociação, o governo validou a proposta de alguns partidos do Centro para adicionar mais um ponto dentro do Plano que permite a presença de missionários nas terras indígenas durante a pandemia, sabendo que esta é uma grave ameaça de contágio, para todos os povos e, especialmente, para os que vivem em isolamento voluntário. Da mesma forma, o governo repetiu o argumento da falta de orçamento para aplicar algumas medidas. A deputada Wapichana respondeu à Amazônia Real que “é contraditório o discurso de que não tem recurso para implementar essas ações e, por outro lado, vetar o artigo que previa que a União poderia adicionar recursos extraordinários, sendo que desde o primeiro momento o Congresso aprovou o orçamento de guerra justamente para ter uma justificativa para que o Executivo pudesse usar os recursos necessários no combate à Covid-19. É contraditório porque o governo investe bilhões, inclusive anistiando e, para os povos indígenas, ele fala que não tem recurso. É cruel. É muito triste ver que as pessoas ainda não perceberam que é uma política de perseguição ao direito dos povos indígenas, é lamentável esse posicionamento porque nossa prioridade é salvar vidas”.
As linhas originais de ação traçadas no Plano Emergencial tem sido o resultado de um trabalho coletivo durante os últimos cinco meses entre a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e parceiros da sociedade civil, com a relatoria final da deputada Wapichana, a primeira mulher indígena no Congresso dos Deputados. O resultado foi uma bateria de medidas para proteger os 305 povos indígenas brasileiros reconhecidos oficialmente, assim como os membros do povo ancestral Warao que migraram desde a Venezuela para o Brasil.
Medidas inicialmente vetadas por Bolsonaro, derrubadas posteriormente pelo Congresso, e que agora formam parte da lei do Plano Emergencial:
– Disponibilização de água potável; materiais de higiene, limpeza e desinfecção; leitos hospitalares e UTIs; ventiladores e máquinas de oxigenação; materiais informativos; internet
– Planos de contingência para indígenas isolados e de recente contato
– Planos emergenciais para quilombolas, pescadores e outras comunidades tradicionais
– Garantida a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais para atendimento dos pacientes graves das Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde
– SUS deverá fazer o registro e a notificação da declaração de raça ou cor, garantindo a identificação de todos os indígenas atendidos nos sistemas públicos de saúde
– Em áreas remotas, a União adotará mecanismos que facilitem o acesso ao auxílio emergencial, benefícios sociais e previdenciários, de modo a possibilitar a permanência de povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e de demais povos tradicionais em suas próprias comunidades
– Inclusão das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), assegurado o cadastramento das famílias na Relação de Beneficiários (RB) para acesso às políticas públicas
Medidas vetadas por Bolsonaro e que ficaram de fora do Plano Emergencial:
– Dotação orçamentária para ações previstas no projeto
– Distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas para indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e demais comunidades tradicionais
– Programa específico de crédito agrícola para povos indígenas e quilombolas