Ao anunciar o novo Pacto de Aceleração do Crescimento – PAC, que a rigor consiste, tão só, numa tentativa de recuperação do atraso, porque crescimento não há por registrar, o presidente Lula marcou a data (11 de agosto) como a do início de seu terceiro governo, ainda condicionado, tanto na sua composição quanto no conteúdo programático, pelas negociações em curso. O ministério de hoje é sabidamente pro tempore, e o PAC anunciado, nada obstante a liderança política e moral do presidente, será conduzido por cabeças ainda não coroadas. Que os deuses do Olimpo zelem por nós.
Uma maior privatização dos recursos públicos é o preço que essa entidade chamada Centrão cobra, às escâncaras, para apoiar um governo sem sustentação parlamentar própria, a fôrma deste mostrengo em que se transformou o falecido “presidencialismo de coalizão”: um inviável regime no qual a Câmara dos Deputados, um Moloch insaciável, tem mais poder que o Executivo. A crise logo transbordará da política para a institucionalidade, porque os maus ventos sempre anunciam tempestades.
Respeitadas as circunstâncias, que normalmente frustram os sonhos, há, porém, o que celebrar. Refiro-me à resistência do presidente, desafiado a todo tempo em sua habilidade política e testado em sua fidelidade ao projeto que o levou das greves dos Metalúrgicos do ABC ao Palácio do Planalto, já pela terceira vez – fato inédito nesta República oligárquica. Mas me refiro de igual modo ao PAC em si, sem ainda discutir seu escopo, ao fim e ao cabo um programa de governo de cerca de quatro anos, a que não revelou apreço a chamada grande mídia. Registro que este terceiro governo Lula, em seu sétimo mês, começa pelo bom início, que é a recuperação do planejamento como instrumento de gestão. O que não é pouca coisa, nas condições presentes, mas não é nada demais, tendo em vista que até mesmo a ditadura castrense adotou esse modelo por anos a fio.
Eis um indicador do nosso atraso.
Com o novo PAC, que esperamos possa ter o sucesso negado aos seus antecessores, retomamos a boa tradição do Estado indutor do desenvolvimento, que conhecemos principalmente na saga varguista, que FHC jurou erradicar. Se não chegarmos a assentar as bases de um Estado socialmente e economicamente democrático, que não deveria ser historicamente tão custoso – e hoje, para nós brasileiros, tão distante –, aspiremos ao mínimo oferecido pela história do presente, a saber, a ablação do neoliberalismo associado ao autoritarismo, essa degradação de que a soberania popular nos livrou em outubro de 2022, sem ainda nos poder livrar da preeminência da caserna, que nos malsina a República desde o nascedouro.
O conservadorismo mais rés-do-chão se irmana ao cobiçoso Centrão, transformando o poder legislativo num colegiado reacionário, refratário a qualquer sorte de mudança nas estruturas arcaicas do poder, de que são produto. Os “grotões” do atraso habitam a Faria Lima e os quartéis e dão ordens ao Brasil, diretamente nos gabinetes do poder (em todas as suas instâncias), ou por intermédio dos grandes meios de comunicação, seu aparelho ideológico de dominação.
Por isso mesmo, no Brasil que passa fome, não se discute o Brasil, não se discute que sociedade temos, nem muito menos que sociedade precisamos ter. O que deveria ser o debate nacional cede espaço ao império da irrelevância; a futilidade como projeto expele a informação. Este quadro, contudo, não é suficiente para explicar o conservadorismo larvar da sociedade brasileira, pois é apenas um elemento, certamente não decisivo, na teia histórico-sociológica que costura nossa formação: seremos sempre filhos da casa-grande e da senzala se não reagirmos ao desafio, ou seja, se continuarmos nos omitindo do debate.
E as esquerdas em tudo isso?
Se as disputas eleitorais são necessárias, e devemos enfrentá-las com o melhor das nossas forças, é também preciso ter claro que, no sistema do capital, o domínio da burguesia é tão sólido que, como alertou Lenin, a mera troca de agentes – de pessoas ou partidos – não abole esse poder. Ou seja, é falsa crença de que a vitória nas urnas, por si só, assegura que a vontade da maioria seja posta em prática, e priorizadas as suas necessidades. As comprovações disso abundam no cotidiano brasileiro, e talvez não haja melhor exemplo do que a tranquilidade com que o grande capital encara a periódica substituição de seis por meia dúzia, a cada pleito, no comando da economia nacional.
Em ocasiões extremas a ordem democrática permite a ascensão de um “estranho no ninho”, mas se lhe cede a governança vigiada ou compartilhada, não lhe permite o exercício poder. Quando esse limite é intentado, a resposta é a de sempre: golpe de Estado
Eis por que a educação política e a organização popular são a chave para qualquer projeto de esquerda – algo que as forças reacionárias, ao menos elas, não se permitem ignorar.
Voltando: o PAC parece ser uma obra bem engendrada, mas jamais será um projeto com o qual o povo (aquele que dá suporte real a Lula) possa se identificar, pois não lhe pertence. Chamado às ruas para defendê-lo, ficará em casa. Porque simplesmente não foi ouvido nem chamado ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde, em noite de gala, o Pacto foi apresentado a uma plateia seleta. Por enquanto é um belo texto, certamente será publicado no Diário Oficial, mas será sempre simplesmente isso: um documento elaborado por técnicos competentes e bem-intencionados. Nada mais. É pouco para um país recentemente assolado pelo assalto da direita protofascista, com inegável apoio popular. Será um engano, certamente letal, suporem as esquerdas que os desafios foram eliminados com as difíceis eleição e posse do presidente Lula. Jamais esquecer que muitas vezes águas passadas movem moinhos. Aos incréus sugiro uma mirada em nosso entorno sul-americano, começando por Colômbia, Argentina e a tragédia peruana.
Contra o repouso do guerreiro em plena guerra, sugiro o combate permanente: nos termos de hoje é a batalha ideológica, fundamental para a conquista da sociedade e para a sustentação do governo Lula. Com o PAC, Lula nos promete a retomada do desenvolvimento, e associa o progresso ao combate à megera miséria, filha primogênita da obscena concentração de renda: segundo o IBGE, a renda do 1% de brasileiros mais ricos é 33 vezes superior à renda da metade mais pobre da população.
Que tal irmos mais adiante e fazermos deste país uma grande ágora, promovendo o debate livre e o livre pensar em todos os cantos e a propósito de tudo e de qualquer coisa? Este é o bom momento de o presidente abrir o diálogo nacional, pôr o país a pensar seus problemas e suas soluções com a sociedade. Perdida esta oportunidade (muitas já foram desperdiçadas), podemos ter segurança de que a História nos absolverá? Apostamos todas as fichas da esperança na coragem de Lula, líder e estadista, aquele que vê mais longe que seus acompanhantes de caminhada. O desafio é passar o país a limpo, como reclamava Darcy Ribeiro, usando a reflexão, o livre pensar, o indagar, o questionar, como ferramenta pedagógica. Estimular as dúvidas, e contar que o povo encontrará respostas. Discutir o país. Por que ele é desse jeito? Ao debater a vida nacional e a vida em seu bairro, em sua cidade, o transporte, a violência, o desemprego, a escola, o sistema político… o povo, sozinho, sem o concurso de instrutores ou conselheiros, compreenderá que nem a pobreza nem a riqueza são fenômenos naturais. A partir desse momento ele conquistará a liberdade que a sociedade de classes lhe nega, e se transformará em cidadão.
Sujeito ativo, se transformará em agente do processo histórico. Um ensaio pode ser trabalhar o PAC como um projeto político, recordando o entusiasmo e a confiança que levaram o antigo PT a implantar o orçamento participativo, hoje uma saudosa lembrança.
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Aula Magna – Assim foi definida, por muitos (defensores ou não da justiça social), a participação de João Pedro Stédile na farsesca “CPI do MST”, que vai se extinguindo na Câmara dos Deputados. Como o inquérito carece da necessária definição de objeto, a reunião da última terça-feira deu ao líder do MST uma oportunidade – rara – de falar ao grande público, com fineza e acuidade, sobre modelo agrário, relações de produção, sociedade de classes e outros temas que domina com brilhantismo, para o espanto de uma meia dúzia de beócios (a começar pelo presidente e o relator do colegiado) que avaliaram poder acuá-lo. Um dos pontos que a aula de Stédile nos deixa para reflexão é a reprodução do modelo agroexportador colonial – que produzia riqueza sem desenvolver o país – no agronegócio que aí está, cantado em verso e prosa pelo aparelho ideológico do grande capital. Outro é o riquíssimo exemplo, de confiança e aposta na capacidade de auto-organização do nosso povo, que o MST e outros movimentos sociais oferecem às esquerdas brasileiras. Há de ser por isso que são tão temidos e odiados. Oxalá essa Aula Magna ecoe nos gabinetes de nossos e nossas parlamentares e diga algo aos partidos que confundem tática com estratégia.
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*Com a colaboração de Pedro Amaral