Alguns anos atrás, um filme, em minha opinião tão provocativo quanto perspicaz, me chamou a atenção pela perspectiva por meio da qual contava a história de uma tragédia. Não pretendo me alongar sobre o filme, afinal estou longe de ser um especialista, mas quero me ater a seu título inspirador – Precisamos falar sobre o Kevin – e ao meu entendimento sobre o enredo, que demonstra como a negligência pode levar a uma grande tragédia. Pois é exatamente essa minha percepção do que ocorre nos diferentes níveis e espaços, dos mais qualificados aos mais informais, com relação à quase ausência de discussão sobre eficiência na gestão pública municipal.
Seja nas provocações ou provações do presidente, seja nos textões nas redes sociais; venha da direita, da esquerda, de cima ou de baixo, a corrupção toma conta do debate e não deixa espaço para a discussão de nenhuma outra origem de nossas mazelas. Antes de prosseguir, é importante ressaltar que reconheço a corrupção como um grande mal a ser combatido em nosso país e que deve-se dar atenção e visibilidade à ela. Entretanto, esse não é o único – talvez nem o maior – desafio que temos. Deixar a corrupção ocupar de forma unânime esse espaço pode nos cegar para a resolução de outros problemas, como a ineficiência de nossas administrações municipais.
O conceito da eficiência não é novo e faz parte de nossa Constituição, a partir da Emenda Constitucional n.19 de 1998. Sua definição, de forma mais abrangente e bastante simples, é a execução dos serviços públicos com qualidade, respeitando o bom uso do orçamento público e visando à redução de desperdícios. Em momento de crises, como o que vivemos atualmente, é importante trazer essa discussão à tona, pois é justamente quando a população mais precisa de uma atuação eficiente de nossos governos. Vamos, então, tomar de exemplo duas situações em que o governo federal disponibilizou vultosas quantias de recursos para os municípios.
A Frente Nacional de Prefeitos (FNP) recentemente apresentou um dado mostrando que mais da metade dos R$ 42 bilhões disponibilizados pelo governo (Lei 173/2020, Lei 14.401/2020 e Portaria 1.666) ainda não haviam sido utilizados pelos municípios. Há também o caso da Lei Aldir Blanc, que disponibilizou R$ 1,5 bilhão aos municípios, entretanto cerca de 25% dos municípios não aderiram para recebimento de sua parte desse recurso. Notamos que a discussão principal aqui não é o mau uso desses recursos, mas sim a não utilização deles em um momento em que as administrações sofreram com um aumento de despesas de Saúde, entre outras, e uma redução das receitas devida à crise econômica resultante da pandemia.
Não restam dúvidas de que o apoio financeiro foi importante, pois sem ele os municípios não teriam os recursos necessários para passar por esse período desafiador, assim como ninguém duvida que nem todos municípios fizeram tudo que era necessário, a ponto de não utilizarem, ou mesmo não aderirem para receber, todo valor disponibilizado a eles. Portanto, o que explica o fato de que a maior parte ainda não foi utilizada e que há municípios dispensando o recebimento de mais recursos?
Não é possível identificarmos todas as causas, porém há ineficiências conhecidas em diversos pontos entre a formulação das políticas públicas e sua implementação que levam a esse resultado. De início, a simples estruturação dessas medidas já apresenta falhas que fazem com que o dinheiro, apesar de necessário, tenha sido enviado com atraso ou para uma finalidade ou localidade que não necessitava de todo aquele montante. Essa falha no desenho pode inviabilizar o restante do ciclo de implementação de políticas públicas, deixando dinheiro na mesa enquanto faltam fundos em outros lugares.
Em casos onde a formulação é eficiente, o início da implementação pelos municípios pode apresentar falhas, a começar pela conscientização do gestor municipal sobre a disponibilidade desse recurso. Há dois contratempos no dia a dia das administrações municipais: não acessar essas informações valiosas ou não compreender que esse é um recurso útil para sua localidade. Independentemente das causas, o resultado de ambos é que muitos municípios acabam não acessando montantes significativos, pois desconhecem que estejam disponíveis ou avaliam que esses recursos não sejam relevantes para suas administrações.
A partir da identificação da oportunidade os gestores precisam, dependendo do mecanismo utilizado para disponibilização do recurso, enviar projetos e documentação solicitada para que sua adesão seja aprovada. Nesse sentido, não é raro que as administrações municipais enviem ou não de forma equivocada os documentos e com isso tenham sua inscrição reprovada. Por fim, aqueles que o fazem corretamente têm outro desafio, que é executar esses gastos seguindo as regras de uso do recurso e a posterior prestação de contas de forma adequada. Novamente, não é incomum que gestores executem de forma equivocada ou deixem de utilizar os recursos recebidos, o que pode levar até mesmo à devolução do dinheiro à União.
Os dois exemplos resultam dessas ineficiências – e possivelmente outras não citadas aqui – e seu impacto é que muitos municípios estão deixando de utilizar uma quantidade significativa de recursos para convertê-los em serviços de qualidade para a população. Há uma necessidade de evoluirmos na discussão e na atuação frente a esse problema, pois a sua redução interfere diretamente na vida de milhões de brasileiros.
A solução não é simples e envolve diversas frentes, mas o cenário é positivo, principalmente no que se refere à evolução de diferentes ferramentas tecnológicas. Atualmente, desde aquelas que facilitam o acesso a informações até as que simplificam a análise de grandes bases de dados, podem ajudar os gestores a reduzir as ineficiências em todas essas etapas. Além disso, o fácil acesso a essas tecnologias permite que gestores em todo Brasil possam utilizá-las, democratizando o acesso à informação e ao conhecimento, algo ainda mais importante em um país tão desigual, onde municípios menores e distantes de grandes centros encontram ainda mais dificuldade.
Sigamos lutando contra a corrupção, mas tenhamos a mesma indignação perante à ineficiência!
*Ricardo Ramos, especialista em gestão pública e cofundador da Gove