É para se acompanhar com grande — e mais do que justificada — expectativa a transformação que o mercado de saneamento básico vive atualmente, com a entrada de novos operadores privados no setor de serviços de água e esgoto no país. Os últimos leilões — dos quatro blocos regionais no estado do Rio de Janeiro e de dois blocos em Alagoas — resultaram em ofertas volumosas e confirmam uma tendência de crescimento de operadores e de investimentos privados no setor, dada a incapacidade de investimentos da União, Estados e Municípios com recursos próprios. A onda de leilões seguirá em 2022 e o ano promete ser movimentado.
A movimentação do mercado, contudo, ainda precisa ser acompanhada de reflexões sobre soluções mais efetivas — públicas e privadas — que possam, de fato, garantir uma melhor qualidade de vida à população por meio da universalização dos serviços de saneamento. Com este olhar, foi desenvolvido o estudo “As 100 maiores cidades do Brasil e o desafio da universalização do saneamento”, que analisou em profundidade o desempenho desses municípios na entrega de serviços de saneamento básico à população na última década.
As cidades do recorte do estudo concentram 40% da população do país e, por óbvio, o maior volume de investimentos em estruturas de fornecimento de água e esgoto — mais de 50% dos investimentos realizados para a melhoria dos serviços de água e esgoto no Brasil entre 2009 e 2019. Ainda assim, a evolução dos indicadores de saneamento nestes municípios na última década, embora melhor do que as taxas médias nacionais, foi lenta. Do conjunto das 100 cidades, 30 não alcançaram o patamar de 95% de atendimento de água, 61 ainda estão abaixo de 90% na coleta de esgoto e apenas 18 tiveram índice de tratamento de esgoto igual ou superior a 90%.
Cidades como Ananindeua (PA), onde apenas 32,4% da população têm atendimento de água e 2,1% têm atendimento de rede de esgoto, ou Porto Velho (TO) que apresenta um índice de 83% de perda na distribuição de água, assim como Governador Valadares (MG), município sem nenhum tratamento de esgoto, revelam o tamanho do desafio para o atingimento da meta estabelecida no Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), que determina a distribuição da água para 99% da população e a do tratamento de esgoto para 90% em todos os municípios do país até 2033.
Ora, há muitas questões urgentes a serem resolvidas, a começar pela recuperação econômica do país pós-pandemia da Covid-19, um dos maiores desafios do Brasil de todos os tempos. Assim, a superação do desafio de levar bons serviços de saneamento para todos requer um esforço conjunto dos setores públicos e privados em termos de melhoria da regulação, qualificação da demanda, melhoria dos contratos de concessão, eficiência operacional e novas fontes de financiamento. Vale lembrar que o Brasil precisa investir R$ 753 bilhões até 2033 se quiser universalizar o saneamento e oferecer serviços adequados de água e esgoto (pesquisa “Quanto custa universalizar o saneamento no Brasil?” — KPMG/Abcon). Ela também destaca que, até 2033, deverão ser investidos R$ 255 bilhões para recomposição da depreciação, sendo R$ 145 bilhões para a recomposição dos ativos já existentes e R$ 110 bilhões para a adequada manutenção das novas infraestruturas de saneamento que ainda serão construídas nos próximos anos para a universalização dos serviços.
Para uma aceleração da agenda de saneamento no País não restam dúvidas de que a consolidação do Novo Marco Regulatório de Saneamento será crucial. É preciso atingir um ponto sem retorno, com previsibilidade e estabilidade regulatória para os atores públicos e privados e com a consolidação de novas normas regulatórias nacionais serem elaboradas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico — ANA. Ao mesmo tempo, é essencial capacitar as Agências Reguladoras de Saneamento locais para a aplicação e o monitoramento eficiente das novas normas nacionais junto aos prestadores de serviço de saneamento públicos e privados.
A transformação necessária inclui a organização de arranjos territoriais que permitam ganhos de escala no atendimento das periferias das cidades e, ainda, aprimorar a governança, a gestão de riscos, a eficiência operacional e financeira e a sustentabilidade ambiental das companhias estaduais de saneamento básico e empresas de saneamento municipais existentes. Merecem atenção, igualmente, o foco na eficiência para a redução de perdas e a melhoria da qualidade dos serviços prestados.
Devem ser ponderados ainda os investimentos privados no setor, com desenvolvimento contínuo de pipeline qualificado e crescente de bons projetos de concessão de água e esgoto ou Parceria Público-Privada (PPP) para tratamento de esgoto e a incorporação de tecnologias de gestão e operação que permitam modernizar o setor e ampliar ganhos de eficiência operacional e no relacionamento com os usuários dos serviços.
Finalmente, fortalecer a segurança jurídica dos contratos de concessão estabelecendo cláusulas padrões e eficazes de monitoramento da qualidade e cobertura dos serviços, alocação de riscos e resolução de conflitos para trazer confiança ao ambiente de negócios. Igualmente necessário é o fortalecimento do mercado de capitais e o desenvolvimento de mecanismos de abertura de capital de empresas de saneamento e arranjos financeiros para atração de capital nacional e internacional e o incentivo ao desenvolvimento de fundos e instrumentos de financiamento sustentável de longo prazo.
A agenda de transformação é complexa e envolve planejamento e priorização das ações do poder público e da sociedade civil organizada para que se possa atingir a universalização dos serviços até 2033. Após a sanção do Novo Marco Regulatório do Saneamento, em julho de 2020, a iniciativa privada tem demonstrado interesse em investir no setor por meio de propostas robustas aos leilões realizados, comprometendo-se a investir mais de R$ 40 bilhões por meio de contratos de concessão e PPP licitados, além de pagar quase R$30 bilhões em outorgas para os respectivos poderes concedentes. A largada foi dada. O Brasil tem pressa.
*Glaucio Neves é sócio da Macroplan Consultoria & Analytics e Maurício Endo é sócio-líder do setor de Governo e Saneamento da KPMG no Brasil.