Como que estivesse tomado por uma inexplicável necessidade de trocar algumas palavras com meu querido Amigo, o Senhor Mário Corrêa Albernaz, fui à rede social por meio da qual costumávamos “conversar” desde que nos reencontramos, há pouco mais de um ano.
Eis que me deparo com uma insólita mensagem de sua querida Filha Tânia (que conheci aos seus três anos) em que registrava com pesar seu primeiro mês de falecimento.
Uma terrível dor no peito tomou conta de mim, e não sosseguei até escrever estas sinceras linhas sobre esse verdadeiro Amigo, Companheiro, Camarada, Mestre, que a Vida me presenteou, que sempre chamei de Senhor Mário, ainda que nossa Amizade – e, sobretudo, a sua inesgotável humildade – insistisse que o chamasse pelo nome.
É que há pessoas tão especiais (mais que isso, elevadas) às quais não conseguimos nos dirigir de forma íntima, que nos parece desrespeitosa. É o caso de minha relação com o agora saudoso Senhor Mário, sua estimada Esposa, a Professora Isaura Matheus Albernaz, e o(a)s quatro querido(a)s filho(a)s – e também querido(a)s Amigo(a)s –, dois casais: Lenine, Adriana, Daniel e Tânia.
Como gostaria de haver dado um abraço apertado a ele. Como gostaria de haver estado em Campo Grande antes do fatídico dia 10 de maio, como chegamos a combinar. Mas exatos 31 dias depois é que tomo conhecimento de sua eternização.
Conheci o Senhor Mário em abril de 1979, na sede da recém-inaugurada sede da seção estadual da OAB/MS, então sob a presidência de seu primeiro titular, o Doutor Wilson Barbosa Martins, situada na esquina da rua Cândido Mariano (depois Marechal Rondon) com a rua Pedro Celestino, em pleno centro da nova capital. Tratava-se de uma reunião do Comitê Mato-grossense de Anistia e Direitos Humanos, presidida pelo também saudoso Amigo e Companheiro Doutor Ricardo Brandão, advogado e poeta amante da integração latino-americana.
Observador, assim que o grupo de estudantes da FUCMT chegara para assistir aquela inusitada reunião (jovens entre 19 e 23 anos), num dos raros intervalos, o Senhor Mário foi estabelecendo um canal de comunicação, como que percebesse o acanhamento desses aprendizes de cidadãos. Logo eu, então muito tímido, já estava à vontade e conversando com ele como se fôssemos velhos conhecidos.
Assim que a reunião terminou, se apresentou e convidou o grupo a participar das atividades relativas ao Primeiro de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, que ocorreria semanas depois no emblemático Bairro Guanandi, emblemático reduto da oposição. Nós não pudemos ir porque estávamos participando do XXXIX Congresso da UNE, em Salvador (Bahia).
Na época, o Senhor Mário Albernaz era chefe de gabinete do Deputado Sérgio Cruz, líder da bancada do MDB na Assembleia Constituinte de Mato Grosso do Sul, mas tamanha a desenvoltura dele, muitas pessoas humildes chamavam seu Mário de Deputado. Prestativo, solidário, ele ouvia longamente as pessoas, fosse na rua ou no gabinete, e sempre dava um jeito de resolver, dentro de suas possibilidades, os seus problemas.
Alguns meses mais tarde, no segundo semestre de 1979, nos encontramos nos corredores da Assembleia Legislativa, no prédio alugado da Missão Salesiana (onde mais tarde foi o Museu do Índio e atualmente é a sede da inspetoria). Eu fazia parte de uma comissão de estudantes do curso de História e nossa missão era levantar fundos para fretar um ônibus para conhecer as ruínas de Santiago de Xerez, em Aquidauana, sob a coordenação da Professora Rosemeire Nunes da Cunha, então coordenadora do curso.
Solícito, o Senhor Mário se prontificou a apresentar a comissão de estudantes a todos os seus colegas de assessoria dos parlamentares do MDB, à época a única oposição ao regime de 1964. Foi quando conhecemos os gabinetes dos deputados Sérgio Cruz, Roberto Orro, Sultan Rasslan, Onevan de Matos, Odilon Nakasato, Getúlio Gideão e Jesus Gaeta (nessa ocasião pude reencontrar dois Amigos corumbaenses, o Jornalista Edson Moraes, que assessorava Sérgio Cruz, e o contabilista Pedro Capurro, chefe de gabinete de Jesus Gaeta).
Mas nossos contatos se intensificaram no debate preliminar à agenda da transição democrática que o então general-presidente João Baptista Figueiredo quis iniciar com a imposição de uma anistia que contemplava torturadores e uma reforma partidária que implicava na extinção dos dois partidos permitidos até então (Arena e MDB). Ele e a maioria dos oposicionistas sul-mato-grossenses eram contrários ao fim do MDB, que começava a reunir condições de vencer a Arena (mais tarde PDS) e iniciar o processo de transição para o Estado Democrático de Direito.
Ao contrário da maioria dos assessores da bancada da oposição, o Senhor Mário Albernaz era um incansável militante da causa democrática. Ainda jovem, foi para São Paulo no período anterior ao golpe de 1964, e como metalúrgico da Mercedes-Benz foi discreto sindicalista, quando conheceu partidos de esquerda, entre eles o velho PCB. Muito discreto, apenas falava de sua simpatia pelo socialismo, a ponto de o seu filho primogênito se chamar Lenine, homenagem ao líder bolchevique da Revolução Socialista na Rússia.
Somente em 1980, precisamente a partir de maio, é que passei a conviver com ele, na condição de prestador de serviço num projeto em que, com o fim imposto ao MDB, a oposição precisava se estruturar, até porque havia sido objeto de um assédio inominado, com a oferta de cargos públicos e vantagens inimagináveis até então. Para minha felicidade, nesse convívio salutar, tive oportunidade de reencontrar Companheiros do Movimento Estudantil, como Mário Sérgio Lorenzetto, Flávio Teixeira e Amarílio Ferreira Júnior, além do Amigo Edson Moraes, grande revelação do Jornalismo Investigativo de Corumbá de meados da década de 1970.
Nesse um ano de trabalho com o Senhor Mário Albernaz, conheci muitas pessoas, desde o(a)s anônimo(a)s que procuravam justiça e assistência num tempo em que o direito era sonegado a toda a população – ainda mais aos mais humildes – e verdadeiras celebridades, como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes, Teotônio Vilella, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Lula, Dante de Oliveira, Tancredo Neves, Wilson e Plínio Barbosa Martins, e aprendi muito: pus em prática minhas noções de pesquisa de campo; aprendi a ouvir pessoas de todas as classes sociais e graus de escolaridade; perdi o medo de falar ao microfone, não só falando em reuniões pequenas como em comícios com mais de mil pessoas; desenvolvi minha capacidade de redação, e, sobretudo, me politizei dentro dos parâmetros dialéticos, sem qualquer ingerência exercida por ele, que se identificava comigo e me incentivava a seguir em frente, mesmo sabendo que a tendência era deixar aquele projeto para seguir meu próprio rumo.
O referido projeto teve início em maio de 1980 e em maio de 1981 se encerrou. Sem dúvida, embora ele discordasse das razões de minha saída, manteve sua Amizade (com letra maiúscula) até os momentos derradeiros de sua generosa e solidária existência entre nós. Eu tive a sorte de lhe dizer pessoalmente que, embora seu cargo usasse o termo “chefe” (afinal, ele era chefe de gabinete), ele havia sido um Amigo experiente que me permitia comandar inclusive a ele, tamanha a sua generosidade.
Além de me ensinar muito, mesmo, o Senhor Mário me encorajou – isso mesmo: me deu coragem – e me estimulou a saber conviver na diversidade, coisa muito rara naquele tempo em que as pessoas tinham que ter muita prudência, pois havia muito informante, muito “dedo-duro”, muito X9… Eu mesmo, no ano anterior, experimentara um rótulo desses e o gelo decorrente da desconfiança. Felizmente o mal-entendido foi superado e eu soube não guardar mágoa pela terrível experiência.
Sem cometer qualquer exagero, posso dizer que seu espírito proletário, sua alma peregrina de socialista autêntico, me proporcionou momentos inesquecíveis. O primeiro deles – e faço questão de compartilhá-lo – foi o gentil convite-surpresa ao aniversário de nove anos de sua querida filha Adriana, e posteriormente, por centenas de vezes, convidado a almoçar e jantar em seu lar acolhedor. Essa generosidade sempre foi compartilhada por sua Esposa, a Professora Isaura Matheus Albernaz, e todo(a)s o(a)s querido(a)s filho(a)s, que ficaram amigo(a)s para a Vida toda. E como se essa atitude não fosse suficientemente eloquente de seu caráter solícito, quando de uma de suas vindas a Corumbá, na década de 1980, fez questão de visitar meus pais em casa para dar o seu testemunho sobre minha conduta como estudante e agente social, quando se tornou Amigo de meu Pai, com quem se identificou.
Aliás, tal qual outro grande e querido Amigo, também saudoso, o eterno e terno Manoel Sebastião Costa Lima (criador da lendária Livraria Guató, de saudosa memória), o Senhor Mário Albernaz discretamente se afastou do ativismo partidário, mas não abandonou a política. Tanto é verdade, que acabamos por nos reencontrar exatamente por causa disso nas redes sociais.
E o mais importante: enquanto políticos e intelectuais outrora de esquerda, por razões que não cabe entrar no mérito, têm justificado a guinada à direita de velhas lideranças políticas do tempo das lutas em favor da redemocratização, o Senhor Mário Albernaz, teórica e praticamente dialético, soube compreender o atual contexto político-econômico e se posicionou como sempre, ao lado das amplas camadas sociais, do povo, sempre na perspectiva da emancipação proletária e da soberania popular.
Longe de querer incorrer numa leviandade, mas os derradeiros momentos de sua generosa existência se deram na dramática e conturbada antevéspera da consumação do golpe parlamentar que afastou a Presidenta Dilma Rousseff do Palácio do Planalto. Sem dúvida, esse estresse pode ter sido determinante para abreviar o tempo de convívio com sua querida Família, o(a)s Amigo(a)s e contemporâneo(a)s, como sua página numa das redes sociais podem constatar.
O fundamental é que o Senhor Mário Albernaz viveu com a intensidade dos justos, leais, honestos e sinceros: coerente com sua trajetória de Vida, permaneceu no mesmo lado – do(a)s excluído(a)s – desde tenra juventude. Um exemplo vivo. Um eloquente testemunho-vida. Um generoso convite para a Vida a serviço do(a) outro(a).
Obrigado por ter existido e compartilhado conosco seus momentos únicos e diversos! Até sempre, querido Amigo!
* Articulista